sábado, 24 de dezembro de 2011

Crônica: A dor de cabeça dos pais.

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A dor de cabeça dos pais

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Pra ser sincero, digo, sem vergonha alguma, que não sou dado a escrever sobre memórias. Confesso: não tenho jeito pra isso. Muito menos quando as memórias são alheias. Hoje papai já não costuma me contar as suas histórias, como fazia quando eu era bem menino. Talvez seja a minha idade a razão do desinteresse dele pelo relato de suas aventuras de infância no Brejo Grande. É possível que ele pense que elas já não me interessem com a mesma força de antigamente, quando nós nos sentávamos na calçada de nossa antiga casa, na São Francisco, debaixo duma acácia, na boca da noite, e ele traçava suas peripécias de cabrinha do buchão. Naquele tempo, no tempo da acácia, notícia séria ou interessante, pra mim, não vinha do telejornal, vinha da resposta de papai à minha pergunta diária: “E aí, pai? Quais são as novidades?”. Mesmo que não houvesse novidade alguma, ele sempre dava um jeito, arrumava algo novo pra me contar. Era como meu velho fechava o meu dia com chave de ouro, com um momento terno de cumplicidade. Agora eu me sinto um traidor, partilhando com vocês aquilo que me segredava de modo tão entusiasmado.
    Ele tem muitas histórias, e algumas tantas são bem engraçadas. Aliás, ele todo, até hoje, tem umas atitudes que saem do tom e fazem os próximos rirem quando lhas conto. Outro dia, janelando de madrugada, quase no primeiro canto do galo, vi o velho pedalando, numa calói vermelha, barra circular, com toda a intensidade meninil (de pau, como diz bonitamente a mocidade), pra cima e pra baixo, dando voltas na quadra e chamando a atenção dos cães da vizinhança. Foi o dia em que deu uma de baderneiro feliz, acordando os nossos ex-vizinhos da Padre Ibiapina. “Pai, Dô quer ir pra casa. Devolve logo essa bicicleta e vem dormir!”, disse, invertendo os papéis. Ao que o ciclista da melhor idade respondeu: “Quer nada. Ele ainda ‘tá é no bar de Toinho, jogando sinuca e embicando umas lapadas.”. Parecia menino, arrumando desculpa pra dar mais uma volta no quarteirão.
    Outra vez bateu boca com os membros da Jovem Crato por conta da zoada que fazia a torcida (des)organizada, num barzinho enconstado na casa da Pe. Ibiapina. Era o aquecimento deles, antes do jogo. Cantavam o hino, soltavam fogos e reproduziam música no volume máximo, imagino, que podem suportar os amplificadores de som que se engastam nos carros. Do copiá, gritou a pior ofensa que poderia ser proferida a um grupo de torcedores fanáticos: “Tomara que o Crato perca!”. Daí levou em troca uma saraivada de vaias, quase em uníssono, não fosse um sujeito mais escroto ter gritado de volta: “Cala a boca, Dedé!”. Pronto, foi o suficiente para que ele ligasse pro Ronda, que chegou, com muito atraso, e encontrou o canto mais limpo. Como se diz no jargão policial, todos já se haviam evadido do local do crime. Não havia evidências de nada, e o assunto se encerrou ali. Ficou por isso mesmo.
    Mas e as peripécias da infância? Me desviei porque o homem tem é história. Da adultidade tem coisas tão gravemente engraçadas quanto as da meninice. Meu pai é o mais novo dos homens, de uma prole enorme. Quem o conhece hoje certamente vai duvidar, mas eu ratifico: ele é mais novo do que tio Zequinha, aquele que mantinha a farmácia Santa Inez, ali na Bárbara de Alencar. Se o meu tio ler esta crônica, ele vai praguejar dizendo o contrário. Pois eu já brinco afirmando que a fuselagem de papai é que está um pouco avariada, certamente pelos excessos da vida. Deixando de lado os detalhes etários e voltando à infância do velho, todos me dizem que, justo por ser o caçula, sempre foi muito mimado. É provável que seu gênio de traquinas tenha como causa esses mimos todos. Conta-se que, em dada ocasião, não se sabe bem o motivo, ele tenha mijado dentro das cabaças com que os trabalhadores de meu avô bebiam água durante o almoço. Imagine a presepada e a pisa que não deve ter levado de vovô Mundico.
   Outra história diz respeito a um xodó de Roque, um ave linda com que fora presenteado pouco tempo antes de meu pai ter posto seu olhar de guerra pra cima do bicho. Era um pavão robusto, volumoso, que Roque fazia questão de mostrar a qualquer vivente que pisasse em sua casa. Puxava o cabra pro terreiro e dizia: “Olha ali, homem, que coisa mais linda!”. Diz-se até que a devoção era tanta, que ele chegava a conversar com o animal. Desmotivadamente agiu de novo o endiabrado. Afinal, menino ruim não precisa de motivo pra fazer diabrura. Numa andaça, à tardinha, escutou o grito da ave no terreiro do homem e, talvez já cansado de matar lagartixa, resolveu uma investida mais ousada: puxou o bodoque e mirou, já bem perto do cercado. Acertou a pedra no quengo do bicho, que saracoteou desesperado, com seus gritos de socorro. O que tinha de volume e de robustez, tinha de vigor. Não morreu. Cegou.
    E mais: inventou de ingressar no cargo de empresário mirim de luta livre, financiando brigas as mais violentas entre os amigos de infância. Como o que não faltava na casa grande de vovô Mundico era rapadura, por conta do canavial e do engenho, fazia desse quitute o prêmio para o vencedor de cada briga. O que não faltava atrás de meu pai era menino querendo trocar uns tabefes por uma banda de rapadura. E assim ele ia organizando os embates: hoje fulano luta com sicrano, e o outro ali com beltrano… Veja bem, camarada: meu pai, ainda menino, já era visionário! Foi o primeiro a investir pesado na prática de luta livre, já no meio infantil. Muito antes de Dana White pensar em existir, nos idos de 50, já estava lá meu velho fazendo uns cabrinhas caírem no cacete por uma banda de rapadura. Fez isso por um tempinho, até vovô Mundico descobrir a marmota e quase lhe torar o espinhaço de tanta lapada com cipó de embira.

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.