terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Gramática: Predicação verbal e um pouco sobre complemento relativo.

     Pouco antes do Natal, mais precisamente em sua antevéspera, um dos membros do fórum Só Português trouxe dúvida que o angustiava bastante. Basicamente, ele tinha alguma dificuldade de reconhecer a transitividade dos verbos na oração. Sem esgotar o assunto, tratei de explicar de modo que não lhe restassem dúvidas. Sem me desviar do fim por que entrei a escrever, também introduzi, brevemente, o conceito de complemento relativo, infelizmente esquecido das gramáticas escolares.

Olá, ***. Devo dizer-te que, de fato, não existe nenhuma técnica infalível através da qual se possa identificar a transitividade dos verbos. A regência de muitos verbos é definida por servidão gramatical; o que se mostra nas gramáticas escolares é a descrição de regências, sem que haja razão para que um verbo ora seja transitivo direto, ora indireto. Em análise sintática, para que se classifique bem um verbo quanto a sua predicação, é importante reconhecer os demais termos da oração. Vou-te tentar explicar melhor com resolver as questões em que tiveste dúvida.

1.ª) Em Saímos do cinema tarde, repara que o termo do cinema indica circunstância de lugar donde e que a significação externa do verbo sair, ou seja, sua referência a noções do nosso mundo (nesse caso, seu próprio significado: deixar um local, passar do interior para o exterior), está contida em si mesma, o que, evidente, aclara parte de sua significação interna, particularmente sua transitividade. A ação de sair, portanto, não exige objeto, visto que ela, sozinha, se justifica. Períodos como Os casais saíram mostram-se claramente completos; o que se pode adicionar a eles são as circunstâncias do acontecimento: Os casais saíram rapidamente; Os casais saíram à noite; Sorrateiramente, os casais saíram da festa; Os casais saíram do cinema tarde etc. Essa pouca, mas eficaz, explicação é suficiente para que se perceba que o termo do cinema é adjunto adverbial e que, portanto, o verbo sair, nesse caso, é intransitivo.

2.ª) Em O filme agradou a todos, tem-se que a todos não pode, evidentemente, ser entendido como indício de circunstância e que a significação externa do verbo transita dele para seu complemento, que é introduzido pela preposição a. Repara também que o termo a todos pode ser substituído pelo pronome lhe, o que é mais um indício da classificação sintática que receberá o verbo. O complemento verbal é chamado objeto indireto porque, formalmente, encerra preposição que o introduz. O verbo é, portanto, classificado como transitivo indireto.

3.ª) Em Preciso de muito tempo, a história pode tomar outro rumo, se se quiser que a explicação seja mais completa. Seguindo a Nomenclatura Gramatical Brasileira, que (não se sabe bem!) deve ter sido revogada, em 2004, pela TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário), que também foi anulada, só que em 2007, o termo de muito tempo, como se tem raciocinado até agora, seria objeto indireto e o verbo, transitivo indireto. A explicação é a mesma: de muito tempo integra a transitividade de preciso e é introduzido por preposição, e o verbo, regendo esse tipo de complemento, é, portanto, classificado como transitivo indireto. É importante que se saliente que toda a análise até então feita se baseia nas lições da gramática escolar, que ainda é bem preenchida pela caturrice da gramática tradicional. Gramáticas mais sérias, como a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, e os Fundamentos de Gramática do Português, de José Carlos de Azeredo, trazem conceitos que, já de há muito, deveriam estar presentes nas gramáticas que se destinam ao Ensino Básico. Um deles é o de complemento relativo, que é o termo que integra a significação do verbo através de qualquer preposição e que nunca pode ser substituído pelo pronome oblíquo lhe(s). O objeto indireto, muito confundido com o complemento que acabei de explicar, dele difere porque sempre é introduzido pela preposição a e sempre pode ser substituído pelo pronome oblíquo lhe(s). A maioria dos verbos que regem complemento relativo não revela por que se deve optar por uma ou outra preposição, pois esse é mais um caso de servidão gramatical. Por exemplo, não se tem como explicar por que assistir, no sentido de estar presente, comparecer, exige a preposição a, e não outra qualquer. Também são casos de servidão gramatical o gênero dos substantivos; não se explica por que porta é feminino, rio é masculino, árvore é feminino etc. ***, quero que saibas que a extensão que fiz sobre o assunto, tratando do complemento relativo, deve ser compreendida apenas a titulo de curiosidade; se te preparas para concursos, é importante que não consideres o conceito desse complemento, pois é certo que a maioria dos concursos, se não todos, não cobram dos candidatos conceitos mais aprofundados.

4.ª) Em Obedeça aos professores, pode-se seguir o mesmo raciocínio: aos professores não indica circunstância (não pode ser adjunto adverbial), integra a significação do verbo obedecer e é introduzido pela preposição a. Esse termo é, portanto, objeto indireto. Repara que esse complemento, até em análise mais rigorosa, deve ser, sim, classificado como objeto indireto, pois é possível a substituição do termo pelo pronome lhes, o que não se permite ao complemento relativo. Sendo assim, o verbo é transitivo indireto.

5.ª) Em Deparamos com uma cobra, faz-se o mesmo raciocínio. O termo com uma cobra é objeto indireto, segundo, claro, a gramática escolar, e o verbo deparar é transitivo indireto. Não custa acrescentar também que, na mesma acepção, o verbo deparar também pode ser usado como pronominal (Deparamo-nos com uma cobra).

6.ª) Em Gosto de pessoas sinceras, a discussão repete-se: de pessoas sinceras é objeto indireto e gosto, verbo transitivo indireto.

Bom, ***, como deves ter percebido, a classificação dos verbos segundo a predicação verbal exige que conheças bem os demais termos da oração (essenciais, integrantes e acessórios) para que possas, excluindo possibilidades e, ao mesmo tempo, identificando as caraterísticas do termo em questão, fazer a análise sintática mais acertada. Note-se que o verbo em si não é termo da oração; evidenciam-se seus valores sintáticos por ele poder ser núcleo do predicado verbal (ou do verbonominal) ou partícula copulativa (verbo de ligação), presente na composição do predicado nominal. O pontapé para a classificação do verbo segundo sua transitividade é a análise do seu complemento. Espero que tenhas compreendido o assunto e que te possa ter sido claro.

Abraço.

Até outros tópicos.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Gramática: Emprego de vírgula antes de “etc.”.

     Um dos foristas trouxe, recentemente, uma questão bastante ventilada e, no entanto, ainda pouco compreendida. Referia-se ele ao emprego de vírgula antes da abreviação etc. Este é ainda assunto polêmico, pois muitas gramáticas acuadas, em lições caquéticas, incutem proibição a torto e a direito. Muitos dos que escrevem em português ainda sentem insegurança ao empregar ou não vírgula nesse caso. A minha resposta tem por fim esclarecer essa questão, desmitificando lições seculares.

Olá, colegas de fórum. Apesar de et cetera (do lat. et coetera) significar e as demais coisas, ou seja, apesar de haver a conjunção e na formação, é lícito empregar-se vírgula antes da abreviação etc. Apegar-se a regras caquéticas, que em nada contribuem com a evolução da língua, evidencia o retrocesso de que tantos são vítimas. Uma delas, contida, por sinal, no famoso Dicionário de Questões Vernáculas, de Napoleão, proíbe vigorosamente o emprego de vírgula antes da abreviação etc. O autor argumenta que, por não se usar, em série de termos coordenados, o sinal de pontuação antes da conjunção aditiva e, também não se deve vírgular a abreviação porque se faz sentir a presença dessa conjunção em etc. Argumento, por sinal, muito furado, pois, fugindo do latim, essas três letrinhas tomam rumo bem diferente em português; não se faz lembrar, entres bons escritores, hodiernos ou não, todo o rigor exigido por Napoleão. Listo abaixo citações de grandes penas de nossa literatura, que, conscientemente, empregaram vírgula antes de etc.

Em Os Bruzundangas e em O Cemitério dos Vivos, Lima Barreto abona a pontuação:

"Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.; mas todo esse folk-lore não tem sido coligido e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso comunicar." (BARRETO, 1923, grifo meu)

"Dificuldades, em casa, credores, mau humor da mulher, rompantes do marido, descomposturas, casas de tavolagem, álcool, etc." (BARRETO, 1953)

Até mesmo João de Barros, em sua Grammatica da lingua portuguesa, serve-nos dos exemplos:

"E dâs que usamos que usamos pera serviço da pessoa e cása, andilhas, cálças, çiroulas, mantéis, alforges, grelhas, tenázas, tisouras, etc." (BARROS, 1540)

Em O Arquipélago, terceira parte de O Tempo e o Vento, escreveu Érico Veríssimo o trecho abaixo.

"Estás condicionado, meu filho. Vocês letrados glorificam a guerra, vivem com essa história de hinos, bandeiras, tambores, clarínadas, cargas de baioneta, etc." (VERÍSSIMO, 1961)

Em O Conde d'Abranhos, fornece-nos Eça de Queirós o emprego de vírgula antes de etc.

"Tinha sobre a mesa pequenas caixas feitas de cartas de jogar, com dísticos em letra gótica que lhes designavam a serventia: caixa das penas, caixa da borracha, caixa do limpa-penas, caixa das obreias, etc." (QUEIRÓS, 1926)

Mais dois lusitanos de peso abonam a pontuação: Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano.

"A denominação de estrangeiros dada aos soldados da rainha e do conde de Trava parece na verdade imprópria, sendo eles pela maior parte galegos, leoneses, etc." (HERCULANO, 1843)

"Os livros de Calisto Elói eram cronicões, histórias eclesiásticas, biografias de varões preclaros, corografias, legislação antiga, forais, memórias da Academia Real da História Portuguesa, catálogos de reis, numismática, genealogias, anais, poemas de cunho velho, etc." (CASTELO, 1866)

São muitas as abonações desse emprego de vírgula. Creio que são suficientes e bem fortes as citações que expus. Por tudo, é evidente que não se pode condenar o emprego de vírgula antes de etc. O que, de fato, se tem de esclarecer é que se faculta o emprego de pontuação, ou seja, fica a cargo de quem escreve usar ou não a vírgula antes da abreviação.

Isso é tudo, ***.

Abraço. Até outros tópicos.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ABL: Cleonice Berardinelli, a mais recente imortal.

Cleonice Berardinelli é a nova titular da Cadeira nº8 da ABL

A Academia Brasileira de Letras escolheu no dia 16 de dezembro, a Professora Cleonice Berardinelli, como a 6ª ocupante da Cadeira nº 8, vaga desde 17 de setembro último com a morte do Acadêmico Antonio Olinto.

Logo no primeiro escrutínio, a candidata eleita recebeu 30 votos. Seu concorrente, o jornalista e ex-ministro Ronaldo Costa Couto, recebeu 9.

A Cadeira nº 8 foi fundada por Alberto de Oliveira, que escolheu como patrono Cláudio Manoel da Costa. Foi ocupada sucessivamente por Oliveira Viana, Austregésilo de Athayde, Antonio Callado, e Antonio Olinto.

Saiba mais

Cleonice Berardinelli nasceu no Rio de Janeiro, em 28 de agosto de 1916. É  graduada em letras neolatinas pela Universidade de São Paulo (1938) e livre docente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1959), com a tese Poesia e Poética de Fernando Pessoa.

Especialista em Camões e Fernando Pessoa, Cleonice Berardinelli é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, consultora ad hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e consultora ad hoc da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

É acadêmica correspondente brasileira da Academia das Ciências de Lisboa desde 27 de novembro de 1975.

Entre seus livros, destacam-se: Estudos Camonianos (1973), Obras em Prosa: Fernando Pessoa (1986), A passagem das horas de Álvaro de Campos (1988), Poemas de Álvaro de Campos (1990) e Fernando Pessoa: outra vez te revejo… (2004).

16/12/2009

(fonte: www.academia.org.br; fotografia: www.imagem.ufrj.br)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.