sábado, 7 de abril de 2012

Crônica: Esticando a baladeira.

Esticando a baladeira

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Vi um tuíte inocente escrito por uma amiga minha, antes de ontem, e lembrei os pequenos exageros de discurso que às vezes a gente é obrigado a cometer, quer para satisfazer o estilo, quer para ser besta mesmo. Mas nesse caso, foi bem diferente: o aparente exagero nunca fora tão bem medido para relatar, com muita fidelidade, um incidente em altas horas. A mocinha comentava sobre o risco de tocar fogo na casa ao tentar fazer pipoca de micro-ondas. E não era só isso, a aparência exagerada da história já começava pelo horário: eram quase quatro da manhã, o galo quase miudando. Não fosse o modo como se levantou, diria que anda muito cheia de vezo sertanejo, a começar pelo horário em que se pôs em pé. Segundo a moça, foi acordada, não se sabem bem as circunstâncias, por um chute no meio da canela, que então repercutiu no corpo inteiro, como espécie de choque elétrico. Quem chutou? Ora mais, certamente um pesadelo. Lá se sabe!
    Foi se erguendo determinada a fazer pipoca de micro-ondas. Levantou-se, depois de alguma pendenga com a morrinha que lhe atacava o corpo, enfrentando o magnetismo que lhe impunha a cama quentinha, o travesseiro surrado, a colcha todo revirada. A bem dizer, seguiu sem se recuperar inteiramente, com os olhos meio fechados, mastigando a alma, bocejando, e nessa hipnose sequer se lembrou de acender as luzes. Uma ou outra canelada numas quinas safadinhas da mobília lhe acenderam um pouco a consciência de que precisava recuperar o estado de vigília para descer as escadas, senão a epopeia matutina de preparar pipoca de micro-ondas se encerraria no hospital ou no primeiro sofá que encontrasse lá embaixo.
    Descia as escadas lentamente, não para evitar se perder numa queda provocada pelo breu, mas porque o sono ainda pesava. Chegou na sala que separa as escadas da cozinha, e saiu tateando a parede atrás do interruptor. O outro desafio foi achar o diabo do saquinho de pipoca naquele inferno de mantimentos no armário da cozinha. Avistou no cantinho o que lhe parecia um saco plástico em que se lia “pipoca”. Rebolou aquilo no micro-ondas, digitou algum número de telefone no aparelho e ligou, sem esperar ser atendida, é claro. Achando merecer algum descanso, se jogou em cima da cadeira mais próxima e arriou a cabeça sobre a mesa da cozinha, caindo novamente nos braços de Orfeu.
    No entanto, o sono foi de novo interrompido bruscamente. Um pipoco desaforado quase arranca fora a porta do aparelho. O susto lhe causou a queda, e o baque da testa na quina do armário lhe fez um cortinho nada discreto. Agora definitivamente acordada, feito uma doida, nervosa com o sangue que lhe escorria pelo nariz, não sabia o que fazer primeiro. Lavou o rosto rapidamente na pia da cozinha e percebeu no reflexo tímido de uma bandeja metálica na primeira estante, logo à sua frente, que o corte não havia sido tão pequeno. Tragou com força todo o ar que lhe havia faltado no movimento da queda e só então sentiu o cheiro de fumaça. A vista se desembaçou, e logo foi recuperando um pouco da razão, o suficiente para perceber que tanto o micro-ondas como a toalha e uns panos de prato sobre o balcão da cozinha estavam em chamas. Em novo desespero, atirou os panos na pia, ligou a torneira e, recolhendo a água com um caneco, desfez o fogaréu dentro do forno.
    Ainda sob efeito do susto, sentou-se novamente à mesa e parou para refletir profundamente sobre o que lhe havia acontecido naquela madrugada. Simplesmente não se lembrava do que fazia na cozinha em hora tão avançada, não sabia por que estava ali, o que causara o acidente, não sabia de porra nenhuma. Foi então verificar o que havia dentro do micro-ondas e ficou surpresa com ter os restos de uma revista de fofocas e alguns pacotes com lâminas de barbear. Certamente avistou “pipoca” em vez de “fofoca” e deu no que deu.
    Foi a vez em que se descobriu sonâmbula e, como ficava o quarto no plano de cima, passou a temer algum sonho em que tivesse o dom de voar ou que contivesse qualquer outra estropolia nas alturas.
   Percebendo que o sangue escorria novamente, pintou a testa de sanativo e, com medo de pregar o olho, saiu com o carro, em busca de uns pontos na testa.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.