segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Gramática: Sobre gramática, língua e preconceito linguístico.

     Voltando às atividades neste blogue, trago ao visitante texto que escrevi em 26 de julho deste ano, no nosso fórum Só Português. Em exame ligeiro da ocorrência duma expressão muito comum, fiz questão de deixar claro quão crédulos são os estudantes caturras do Português, os que seguem os ditames seculares dos dinossauros da gramática. Trato justo da confusão que se faz quando se discutem língua e gramática. Busco aclarar quão virtual é a língua que os mesmos dinossauros dizem ser a falada no Brasil, uma vertente petrificada do idioma, presente apenas nos clássicos de nossa Literatura e nas gramáticas escritas por esses gramáticos. O colega de fórum havia perguntado se o correto seria escrever e falar mal e porcamente ou mal e parcamente. Perguntando sobre a correção e a frequência dessas formas, ainda teceu questão, baseada em opinião certamente atingida por preconceito linguístico. Perguntou se alguém achava que a segunda forma (mal e porcamente) é típica de gente do campo. Bom, esse assunto é delicado e ainda muito mal compreendido pelos que estudam o Português; é, aliás, tema muito pouco ventilado, o que o torna ainda mais preocupante. O preconceito linguístico tem de ser discutido seriamente e suas consequências têm de ser compreendidas por todos os falantes do Português. Abaixo está a resposta que escrevi ao confrade de fórum.

Prezado ***:

O exemplar, a forma tida como correta pelas gramáticas, é mal e parcamente. Bom, quanto à correção e à frequência, não há muita homogeneidade, não. A forma mais alastrada, mais comum, é justamente a "incorreta" (mal e porcamente). Se pesquisares no Google o número de entradas para uma e outra forma, verás que mal e porcamente é assustadoramente mais comum do que a forma defendida pelos gramáticos. Para o modelo exemplar (mal e parcamente), aparecem 10.600 entradas, enquanto que, para a outra forma, a basta quantia de 371.000 entradas, ou seja, há 35 vezes mais registros da forma condenada. Será, então, que mal e porcamente não existe!?

Tratemos agora de outro assunto: preconceito linguístico. É importante não engastar cegamente no seu papel de falante a semente daninha da defasada gramática escolar de hoje (refiro-me a todas as que tanto custam ao bolso dos estudantes do ensino básico e muito os fazem sofrer). Ninguém tem de sofrer para aprender a se comunicar, ninguém deve sofrer a gramática para tanto (isso é evidente; não é papo científico, é fato palpável). Comunicação é atividade intrínseca do homem, e por isso é demonstração de ignorância acreditar que comunicar-se bem depende do bom uso de regras gramaticais. A grande confusão que se faz é confundir a língua com os ditames da gramática. Todo falante tem de ter consciência de que há variedades na língua; ninguém tem de gozar da própria ignorância falando conforme gramática que não reflete realidade alguma. Arroubos de ignorância, como negar a existência da forma mal e porcamente, é tão anticientífico como acreditar obstinadamente que o homem não foi à lua, que a Terra é plana, que o nosso planeta é o centro do universo etc. Não faço apologia do vale-tudo defendido por muitos linguistas; o que não pretendo, entanto, é negar-me coisas que meus olhos veem diariamente. É importante, se não urgente, alterar o modo como se ensina gramática e o que é ensinado por ela. Não me refiro a inserir, nas gramáticas, formas estreitamente dialetais, usos próprios da fala e quejandos, até porque, como já havia dito, gramática é bem diferente de língua. Engana-se bastante quem acha que gramática é o corpo de regras que determinam como a língua é utilizada. A gramática reflete apenas parte bastante tímida da imensidão que é a língua, ou seja, mostra apenas o funcionamento da tão ventilada norma-padrão. Expressões como falar de jacu, português de doméstica e outras aberrações têm de ser varridas das atitudes linguísticas de cada falante. A pouca consciência linguística dos falantes, associada à atitude criminosa de muitos "donos da língua", que aparecem, com toda a verve de enganador inveterado, na mídia sedenta, é a força motriz que perpetua a situação decadente do ensino do Português no Brasil e que engasta nas mentes cativas o preconceito linguístico, talvez o mais invisível dos preconceitos. A invisibilidade talvez se justifique: quem deveria contribuir com a desmistificação do embuste que se faz da língua é justo quem mais o encobre: a mídia, que apregoa ter por honroso mister a utilidade pública, que, nestes tempos, não tem sido atitude útil e, muito menos, pública. Os linguistas sérios, que sabem plenamente da realidade do ensino do Português, estão, portanto, parcialmente manietados, no que se refere a levar esse preconceito à tona, à percepção dos brasileiros. Caso queiras, ***, saber mais do assunto, lê o livro "Preconceito Lingüístico — O que é, como se faz", de Marcos Bagno, um dos mais incisivos combatentes desse preconceito, que, por sinal, reflete outros: social, racial etc. Então, resumindo, o recado que deixo é que devemos, sim, conhecer a norma-padrão, a língua que é chamada exemplar por Bechara, para, antes de tudo, nos libertar das teias que nos prendem apenas a pequena parte duma entidade enorme e vivaz. Precisamos compreender bem a norma-padrão para atender à necessidade de conhecimentos vários: ter acesso ao que escreveram os clássicos da Literatura, ao que consta dos livros técnicos etc. Temos, entanto, de ser suficientemente livres e sábios para compreender todos os que falam a nossa língua, e por isso é necessário que se valorizem todos os falares do brasileiro. Sejamos, portanto, "poliglotas dentro de nossa própria língua".

Abraço. Até outros tópicos.

sábado, 31 de julho de 2010

Sugestão musical: Uriah Heep - ...Very 'eavy... Very 'umble

Inicialmente denominada Spice, a banda inglesa, no final de 1969, passa a se chamar Uriah Heep, nome de uma das personagens do romance David Copperfield, de Dickens. A estreia do grupo musical é arrebatadora. Quem conhece Uriah Heep sabe que não me preciso estender falando da banda. O disco ...Very 'eavy ...Very 'umble está longe de ser o melhor álbum do grupo, mas é obra muito boa. Alguns dizem que Uriah Heep é banda de roque progressivo porque, em muitas canções, há forte presença de teclados com sintetizadores, mudanças de andamento mais exóticas e que tais; não acho que seja banda suficientemente progressiva. Enquadra-se mais no grupo das bandas de hard rock sessentista mais experimentais. O álbum de estreia traz uma das mais esquisitas capas que já vi; nela está o finado vocalista David Byron, que esteve à frente da banda de 69 a 76, com a cabeça envolta por teia de aranha. A pretensão é fazer resenha musical leveira e sincera, sem os atavios enfadonhos de descrição estreitamente técnica nem os arroubos de encantamento pela obra que estacionam o raciocínio às primeiras notas. Tendo essa posição como fulcro do juízo, entro a descrever cada uma das canções. Gypsy inicia o álbum muito bem, com força; os teclados começam reclamando da vida e, em seguida, o contrabaixo se intromete, com a timidez caraterística, e também começa a reclamar da vida. Depois de um tantinho, estão os dois instrumentos discutindo, batendo boca, porque a bateria 'tá dando as ordens, fazendo a marcação. No entanto, o que traz ordem ao caos são os riffs fortíssimos de guitarra que, no início do segundo minuto, insinua como a música se deve desenrolar. O terreno, nesse momento, na metade do segundo minuto, está preparado para o ingresso de David Byron. Aos 2min20s começa o gozo dionisíaco de variadas experiências sonoras; o teclado fica louco, levado pela energia da marcação dos demais instrumentos, e começa um solo devasso, excessivo e inteiramente livre das peias musicais do hard rock (por isso, um tanto experimental, ou um tanto progressivo, como querem alguns). Essa loucura deliciosa dura até os 4min08s de música, e, a partir desse ponto, dá-se a trégua. Aos 4min55, a música se ajusta ao (digamos) hard progressivo típico (sim, o grupo apresenta traços progressivos) e continua com a marcação pesada, com a guitarra aguerrida e com os teclados soltos e danados. Aos 5min55, dá-se a experiência, uma bagunça envolvendo todos os instrumentos, e o fim caceteiro. Excelente entrada, Gypsy. Walking In Your Shadow não me impressiona, é boa canção de hard rock. Traz um bom solo de guitarra, seguido duma leveira quebra de ritmo, que é imediatamente revertido ao estado dantes. Destaque para muito bons riffs de guitarra. Come Away Melinda é a canção mais melodiosa do álbum, às vezes minguante, meio chorosa, mas boa. Lucy Blues é tão-somente bom exemplar de blues, sem nada de especial; às vezes, a canção é comum até demais (se bem que isso é bem desse gênero musical: nele há sempre um catatau de canções parecidas). O que mais nos chama atenção são as muito boas passagens de teclado, com uma pitada de nervosismo que fica muito bem na marcação de blues. O bom desse momento bluesístico é que Byron pode abusar bastante de sua voz; a veia excessivamente melódica mais do que permite. Dreammare (agora, sim!) é um dos pontos altos desse álbum, se não o mais alto; é cacetada de hard rock. Excetuando-se o cantarolado no entremeio da melodia (isso é bem pessoal: não gostei muito), a canção revela a que veio toda a energia da banda. Outra canção muito boa vem em seguida; Real Turned On é outro ponto alto, e os riffs de guitarra nela presentes lembram-me muito, muito mesmo, Wishbone Ash, sem toda a multiplicidade de guitarras, evidentemente. Talvez seja toda a típica energia do hard rock pincelada, muito certamente, com o andamento bluesístico em algumas levadas, um pouco mais enérgico, o que me faz lembrar essa outra banda britânica. I'll Keep On Trying é gema da banda, até hoje muito presente nos shows; a introdução dada por guitarra, teclado e canto bem chamativo é bem a cara do Uriah Heep. Há, nessa canção, algumas mudanças de andamento bem típicas: aos 2min10, a canção torna-se bem mais melodiosa, com um coro ao fundo, o que é, em verdade, o introito de um crescente e paulatino retorno à agressividade dum solo fortíssimo de guitarra, que imediatamente explode. Aos 4min37 ocorre a mudança de andamente que já se havia dado nos instantes iniciais da canção, a guitarra traça o rumo ligeiro e enérgico, que desemboca num excedente de teclado fazendo charme no encerramento da canção, imitado, pouco depois, pelo resto dos instrumentos. Wake Up (ou Set Your Sight) é muito boa! É a canção mais bem composta e talvez a mais tecnicamente esmerada do disco. Começa falseando, sem querer entregar o jogo, mostrando a voz lamentosa e minguante de Byron e dando sinais, falsos, de que a música será excessivamente pra baixo. O andamento de bateria, entanto, desmente tudo, pouco depois, ainda no começo da canção, e assume espírito bastante jazzístico. O contrabaixo e a guitarra seguem a energia alegremente iniciada pela bateria. A voz um tanto chorosa, às vezes, contrasta com essa levada um pouco mais enérgica. A mudança de ânimo nos entremeios da canção faz dela a mais interessante do álbum, ou mesmo a melhor (por que não?). Aos exatos 3min, a música torna-se mais leve, mais onírica, mais doce, o que a faz bastante especial, pois a transição foi muito bem preparada, sem romper com todo o tema, que é encerrado nesse estado, mais leve e bonito.

Faixas:

1. Gypsy [6min38s]
2. Walking in Your Shadow [4min30s]
3. Come Away Melinda [3min48s]
4. Lucy Blues [5min8s]
5. Dreammare [4min37s]
6. Real Turned On [3min39s]
7. I'll Keep on Trying [5min27s]
8. Wake Up (Set Your Sight) [6min20s]

Selo: Mercury.

Lançamento: Junho de 1970.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Gramática: O plural dos substantivos terminados em “–ão” tônico.

      Peço antes perdão ao visitante que me acompanha há algum tempo, aos amigos que me leem e ao visitante acidental, que de falta de tempo me fartei a não mais poder. Volto a casa, a estas bandas, a estas aldeias gramaticais, para tentar, responsável e verdadeiramente, desmitificar o monstro que se faz dos plurais dalguns substantivos amigos. Hoje respondi a questão de morfologia muito comum. Perguntou-me confrade do nosso fórum Só Português, que pessoalmente ainda chamo SOLP, quais regras determinam os plurais de substantivos terminados em -ão tônico. Abaixo está o que lhe respondi.

Olá, ***. O que se sabe é que não há regras que definam os plurais de substantivos terminados em -ão tônico. Num mecanismo suficientemente lógico, existem, por exemplo, regras que determinam os plurais de substantivos terminados em -l; para os terminados em -ão tônico, infelizmente, elas não existem. O que as gramáticas mostram são exemplos e mais exemplos de uso. Rigorosamente, fazem-se descrições dos plurais de nomes em -ão tônico com o uso de regras morfofonêmicas, o que não é nada interessante em estudo descritivo mais simples, como o do ensino médio. Bechara, em sua Moderna Gramática Portuguesa, afirma que "os nomes em -ão tônico a rigor pertencem à classe dos temas em -o ou em -e, conforme o plural respectivo" (BECHARA, 2005: 119). Baseado numa estratégia proposta por Mattoso Câmara, o que Bechara descreve é o caminho inverso: do plural se descobre o tema do substantivo. Isso não é regra para determinar plural; assim o que se pode fazer é reunir e categorizar palavras com o mesmo tema e submetidas às mesmas regras morfofonêmicas.

1.º) Substantivos com radical em e com tema em -e fazem plural com o acréscimo de -s. Por exemplo, leão faz leões (*leõ + e + s); visão, visões (*visõ + e + s); coração, corações (*coraçõ + e + s) etc. Neste grupo está a maioria dos substantivos em -ão tônico. Todos os abstratos terminados nos sufixos -ção, -são e -ão seguem essa "regra". Obs.: Uma dica geralmente certeira é relacionar o substantivo com algum adjetivo derivado para descobrir a terminação de seu radical modificado pelas regras morfofonêmicas. Por exemplo, sabe-se que, na formação consequente, o radical de leão é leõ, e não leã, recorrendo ao adjetivo leonino, em que esse radical está evidente (*leõ = *leo(n)).

2.º) Substantivos com radical em e com o tema em -o fazem o plural com a adição da desinência -s. Por exemplo, irmão faz irmãos (*irmã + o + s); cidadão, cidadãos (*cidadã + o + s); cristão, cristãos (*cristã + o + s); grão, grãos (*grã + o + s) etc. A dica da observação do item anterior não se aplica a esses substantivos. Notem-se as palavras relacionadas que seguem as mesmas regras morfofonêmicas: irmão, irmanar, irmandade; cidadão, cidadania; cristão, cristandade; grão, granito, granoso. Elas apenas esclarecem que o radical consequente termina em , e não em ; não sugerem, portanto, nenhum caminho para determinar o plural. A razão disso aparece na observação presente no tópico seguinte.

3.º) Substantivos com radical em e com o tema em -e fazem o plural com a adição da desinência -s. Obs.: Nesse ponto reside o problema, e nele muitos se embananam, saracoteiam, e não saem do lugar. Ora! Não saem porque não há aonde ir. A questão é que os substantivos desse e do segundo caso têm radical consequente, já preparado pelas regras morfofonêmicas, com a mesma terminação, e neles aparecem vogais temáticas distintas. Como usa dizer meu pai: "Aí, babau!", porque não se pode recorrer à dica da semelhança material com palavras de outras classes, pois nestas, no mais das vezes, não aparecerá a vogal temática, que é o ponto distintivo nesse caso. Em panificar, tem-se *pã(n), mas não há sinal da vogal temática, para que se possa determinar o plural de pão. Deixando de lado nosso conhecimento da forma das palavras (estabelecido pela frequencia com que se nos deparam) e seguindo estritamente o modo como se formam, consoante o processo já descrito, sabendo que *pã é o radical, poder-se-iam formar pãos ou pães, já que, num raciocínio direto, não se sabe que, na formação do plural de pão, aparece a vogal temática e. O mesmo acontece com capitão, alemão, catalão, escrivão etc. Resumindo: Nesse caso, é possível excluir o primeiro tipo de plural, com radical consequente em , mas não é possível, seguindo raciocínio estritamente lógico, determinar se o plural de um substantivo com radical em termina em -ãos ou em -ães. Isso é questão baseada no uso, na frequência com que os grandes nomes da Literatura flexionavam esses substantivos. Tanto é assim, que muitos desses substantivos apresentam mais de uma forma para o plural (aldeão: aldeãos, aldeões, aldeães; refrão: freãos, refrães). Bechara, evidenciando o modo desregrado como se dão esses plurais, afirma que "dada a confluência das formas do singular num único final -ão (diferenças no plural, como acabamos de ver), surgem muitas dúvidas no uso do plural, além de alterações que se deram através da história da língua, algumas das quais se mantêm regional ou popularmente, em geral a favor da forma plural -ões, por ser a que encerra maior número de representantes" (BECHARA, 2005: 120).

O segredo, ***, é semelhante, excetuando-se as regras seculares, ao da ortografia: envolver-se bastante com as palavras, através do hábito da leitura e da escrita, ou seja, alimentar continuamente nossa memória visual das palavras. O que as gramáticas escolares fazem é listar os plurais de substantivos terminados em -ão tônico em três categorias, tendo o aluno de se virar para decorá-los. Feio, isso. Não achas?

Abraço.

Até outros tópicos.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Crônica: Nem a rosa, nem o cravo…

Nem a rosa, nem o cravo...

Jorge Amado

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.

Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.

Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

O texto acima foi publicado no jornal "Folha da Manhã",  edição de 22/04/1945, e consta do livro "Figuras do Brasil: 80 autores em 80 anos de Folha", PubliFolha - São Paulo, 2001, pág. 79, organização de Arthur Nestrovski.

(fonte: releituras.com)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Citação: Eça define crônica.

O Valor da Crónica de Jornal

“A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que lêem: conta mil coisas, sem sistema, sem nexo; espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites, fala de tudo, baixinho, como se faz ao serão, ao braseiro, ou ainda de verão, no campo, quando o ar está triste. Ela sabe anedotas, segredos, histórias de amores, crimes terríveis; espreita porque não lhe fica mal espreitar.

“Olha para tudo, umas vezes maliciosamente, como faz a lua, outras alegre e robustamente, como faz o sol; a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China; ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe o resto do jornal; está aqui, nas suas colunas, cantando, rindo, palrando; não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando.”

Eça de Queirós

Texto originalmente publicado em Distrito de Évora, em 6 de janeiro de 1867.

(fonte: citador.pt)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Crônica: O porteiro e o executivo

O porteiro e o executivo

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Após a ligação telefônica, aquele indivíduo sisudo pagou a conta e deixou o restaurante com o cenho carregado, de quem tem infinidade de coisas que fazer. Com a cabeça distante, esquecera o guarda-chuva sobre uma das cadeiras, e um dos garçons, inutilmente, gritou-lhe com a preocupação típica, aquela que todos temos quando se vê que algo não está certo. O pensamento não se continha na parte mais alta do corpo; estava em outra coisa qualquer, em que passou a pensar o simples funcionário do restaurante. Insistia consigo em imaginar o possível turbilhão de coisas abstratas que punham aquele homem tão feio, tão sério, tão morto. O indivíduo segue o caminho marcado, como mais um na manada, cheio de sangue fresco e cativo; ao seu chefe dá-lhe o rubro em gotas, em sofrimento contínuo, mas, com o peso de outra cor, a mesma que lhe permite o uso do restaurante salgado e da credulidade dos seus bons funcionários, acredita que toda essa mentira não será praticada diariamente pelas duas obras loiras de suas entranhas. Eram galegos e pidões, e a isso o pai sempre temeu. A mania patológica de os meninos quererem tudo o que lhes distasse mais que a medida do alcance perturbava a concentração já revirada do cativo. Não se permite, em tal altura, falar em raciocínio; a mente é tomada unicamente por concentração, que, diferente da que calcula o preço das atitudes, o distancia cada vez mais dos dois meninos loiros e pidões.
    Cego, vítima do automatismo do homem do século XXI, que é esquizofrênico e não percebe, recebe caridosamente da fachada do edifício em que trabalha a visão, que é apenas parcial, ou melhor, mais se aparenta à permitida pelas viseiras que se põem em cavalos. Segue, então, sem cumprimentar a ninguém, e os funcionários sãos do prédio são os que criaram o hábito de nomear as paredes com os antropônimos desses tipos cegos e surdos. Josué, o porteiro, com a boa educação de sempre, faz questão de dar os bons-dias que lhes são tão habituais, e brinca com um dos homens sadios, executivo talvez tão ocupado quanto aquele surdo a que o porteiro e o garçom são invisíveis, dizendo que aquela parede do canto se chama sicrano e aquela outra tem fulano por nome. O homem sadio e ocupado do discurso é, em matéria, igualmente abastado, mas deu a sorte de não sofrer dos mesmos males. Desnudado das preocupações doentias de confeitar a vida para que os outros a comam, o homem, Feliciano, traz, não só no nome, a alegria de gozar da vida diária que leva. Faz questão da conversa leveira com o bom Josué, que, por compartilhar o mesmo gosto pelo papo, acumula histórias que configuram obra vasta. E é sempre no possível intervalo entre duas atividades importantes de homem engravatado que este trata de trocar ideias as mais variadas com o porteiro: o ano de eleição, as candidaturas, as piadas colhidas no dia-a-dia*, as caricaturas que andam e falam, o pitoresco da vida etc. Se me permitir o leitor mais cordial, faço a breve reflexão sobre os homens engravatados que se segue. Por falar nesse tipo de homem, quase toda atividade de homem engravatado é importante; falei “quase” porque todo brasileiro que gosta do Brasil sabe que há muitos engravatados podres nesta terra, e são justo eles os que tomam muitas decisões por nós. Não acredito na existência de representatividade, em sentido amplo, por estas bandas; estou certo, pelo menos, de que nunca direi que um desses engravatados representa os meus anseios de cidadão brasileiro. Mas, feita a reflexão e voltando ao bom homem engravatado, todos o sabem aberto, de sorriso largo e, antes de tudo, detentor da empatia em seu mais legítimo significado, que não é aquele tipo maquiado com caras, bocas e testas franzidas, e jamais é carregado de doses ardilosas de piedade gratuita. Esse homem verdadeiramente bom também é bom pai; quer aos filhos muito mais que a si. Veja-se que tenho tratado dos dois lados da mesma moeda, que é o homem deste século forjado pela pós-modernidade que tantos querem, mas que mata. Os do time do neurastênico, aquele que esquecera o guarda-chuva no restaurante e cometera vários outros enganos mais sérios na vida, têm ao Feliciano como o paspalho que perde tempo jogando papo fora com o porteiro igualmente detestável. Por eles, Josué é visto assim porque é do outro time, da moeda pertence à face menos suja e certamente mais propensa ao riso amplo, à alegria compartilhada, aos bons-dias inocentes, às piadas pitorescas e, enfim, à rendição à vida, tarefa fácil, diariamente executada pelo porteiro e pelo executivo que com ele conversa. Além de bom pai, o executivo sadio também é exemplo de esposo que ser seguido; é aquele tipo que escuta o que se diz durante a cerimônia religiosa do matrimônio e segue, sem muito custo e com muito orgulho, os ditames com que se alcança a felicidade conjugal. Por homem bom que é, não seria necessário, e talvez fosse incorreto, dizer que, só por vero audiente ao que diz o padre, seguiria todos os mandamentos matrimoniais. Os princípios dele se construíram como pedra tenaz e robusta, que talvez seja a mais leve com que já tenha mantido contato. A todo bom homem, não lhe custa ser compatível com a vida. E é esse, no entanto, o grande problema daqueles executivos doentes, do outro time; eles optaram por não ser compatíveis com a vida e preferem manter a querela camicase da incompatibilidade. Descobrir a razão de tudo, da falta de encaixe, talvez seja a salvação do homem contemporâneo, e eu não tenho a pretensão de correr atrás disso, que se sabe o perigo e o desgosto enfrentados quando esta verdade teima em aparecer: foi tudo querença própria. Como disse, a conjetura que faço não é a pretensão catártica e reveladora de trazer à tona a origem do mal, mas a raiz talvez seja o mesmo problema enfrentado pelos galeguinhos pidões do executivo doente e esquecidiço: quis o homem, em algum momento de profunda infelicidade, ter tudo o que distava mais que a medida do alcance da mão, não soube, como as crianças, reconhecer a doença e submeteu tudo ao escopo danoso da pretensão.
    O homem sem guarda-chuva foi sofrer o seu trabalho, fornecer a dose diária de sangue ao patrão, que, não menos neurastênico, lhe agradece com o cuspe diário do menosprezo. O executivo doente faz todo o serviço com a sensação gostosa de ter a cara maculada com a saliva de alguém igualmente imundo, que, a propósito, é seu superior, o que é mais uma das ideias bobas que se criaram entre os que formam o time dos surdos e dos cegos e que serve até para identificar as peças da equipe e a sua escalação. Assim se correspondem os hodiernos amantes da escatologia diária da relação hoje normal entre os homens, do viver em sociedade e sofrer do seu automatismo. Os que não são assim são, como Feliciano e o porteiro, lembrados como os pobres loucos da felicidade, do querer bem e do lembrar a vida que vivem. Sempre alvo da inveja manifestada através do rancor que sentem os doentes, os bons homens são lembrados como detestáveis, burros e vadios pelos pertencentes à sociedade automática, aqueles do outro time, os que amam o podre cenho fechado da outra face da moeda. São lembrados pelo tempo que “perdem”, são lembrados porque se misturam, são lembrados como os que não pensam no futuro, na segurança financeira etc.
    Mas, graças ao meu bom Deus, esses bons homens serão sempre lembrados.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

______________
* Apesar do que diz o novo VOLP, não acho justo escrever dia-a-dia sem os dois hifens. Como no comentário que havia feito em outra postagem, não tão distante, afirmo novamente que, no novo Vocabulário Ortográfico, se tem confundido sintaxe (locução) com morfologia (palavra composta).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Poesia: A Acauã de novo ilustra triste seca no sertão.

A acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Gustavo Henrique S. A. Luna

Quente vento viperino
Zangado, maltrata o peito
Do agricultor direito
Filho do chão nordestino
Suportando o sol a pino
Tem triste constatação
Quando ressoa a canção
Da ave que muito assusta
A Acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Dói-lhe ver tudo que planta
No chão ficar escondido
Feito menino parido
Já morto, sem esperança
Dói o peito, a fé alcança
A cruel conformação
Da morte de seu torrão
Que é sofrer que não se susta
A Acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Arde a vontade de ter
Um curral grande pendido
Gado muito e bem nutrido
Muita coisa de comer
Sem muito se abater
Sempre recorda a feição
Da morte fincada ao chão
Que é a caveira que assusta
A Acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Sem ter a quem recorrer
O agricultor não espera
Na terra em que a morte impera
Não há nada que nascer
Ora pensando em ceder
Largar de vez o torrão
Ir em busca doutro chão
Quer viver de forma justa
A Acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

A tarde vai-se acabando
Quer testar o cupinzeiro
Da chuva adivinhadeiro
Um punhado tateando
A sorte se afastando
Não é boa indicação
Só lhe mostra sequidão
Da terra que é injusta
A acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Passa um dia e outro dia
Sem a barra a despontar
Confirmando o seu penar
É o Natal sem alegria
Consolando a sua cria
Depois da adivinhação
Não quer mais riscar o chão
Pois a chuva muito custa
A acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Já não são pedras de sal
O recurso predileto
Do céu investiga o teto
Em busca de menos mal
Canta a ave infernal
Do agouro a propagação
Voa pelo seco chão
A pouca fauna se assusta
A acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Vê um inseto serrando
O galho dum juazeiro
Prometendo bom janeiro
A chuva fica esperando
Pelas terras vai andando
Em busca doutra visão
Não percebe a ilusão
Dessa mentira robusta
A acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

O bicho que o enganou
Certamente outro besouro
Imagem que valeu ouro
Mas que agora passou
O serra-serra escutou
Fruto da imaginação
Fez amargo o coração
Sentimento que o frustra
A acauã de novo ilustra
Triste seca no sertão

Corpo lasso e sol grosseiro
compartilham a imagem
Da ave que traz coragem
Da borrasca o mensageiro
O tetéu surge ligeiro
Renovando a emoção
Da chuva a ressurreição
À ave agourenta expulsa
A acauã não mais ilustra
Triste seca no sertão

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

 

Comentário: Este é o meu primeiro poema colorido. Tinha-me enveredado bastante por outros caminhos; fazia, no mais das vezes, prosa e, experimentando, uma ou outra poesia cinza. Obviamente, há nestes versos a marca do desazo de quem se iniciou às décimas. Inicialmente, litigando com a rima e com o metro, fui trazendo, pouco a pouco, ao fim a poesia. O tema surgiu-me por acaso; entrei a escrever estrofe e a parelha final deu-me o mote. Espero que não seja tão desagradável a minha estreia e que me surjam mais temas para que, perscrutando o legítimo, o cerne, o íntimo, possa desatar o nó que ainda se prende à cor dos versos meus.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Artigo: É a juventude portuguesa quem mais resiste.

    Lendo artigo recente sobre como recebem os portugueses o Acordo, fui informado de que o maior percentual contrário à mudança corresponde justo aos jovens da Santa Terrinha. Surpreende-me serem eles os que rejeitam as regrinhas que já são aprendidas no Brasil, pois, com a mente fresca, borbulhante, não perderiam mais que meia hora para aprenderem todas as mudanças, que, como todos o sabem, são muito poucas. Quais seriam, então, os motivos para tanta repulsa dos jovens portugueses? Seriam eles vítimas da confusão que se faz entre língua e gramática? Faço a pergunta porque corre por lá a ideia de que não são decisões políticas que mudarão o modo como o povo português fala e escreve. Isso não é mentira e é sabido por muitos. O que é bastante claro, no entanto, é que a língua, entidade viva e, portanto, dinâmica, não é alterada, em hipótese alguma, pela decisão de pouquíssima partícula da sociedade, que são [sic] os membros da comissão do Acordo e autoridades políticas nele envolvidas. Não serão minúsculas alterações ortográficas a pedra no sapato dos usuários da língua, que, fluida e flexível, está sempre se renovando de acordo com os ditames do povo que a fala; então, está claro que o que muda pertence à gramática normativa e à tão obscura norma culta e está longe, muito longe, de afetar o rumo da língua de cerca de duzentos milhões de falantes espalhados em todos os continentes. Parece que o discurso de defesa da língua, que circula entre a juventude portuguesa, está mais próximo à empolgação pseudorrevolucionária, que, a propósito, se alastra como doença altamente contagiosa.
    Outro ponto com que se defendem os portugueses, principalmente os jovens, é que o povo lusitano não foi consultado sobre a mudança. Esse argumento também tem suas fragilidades. É evidente que qualquer falante não possui o conhecimento linguístico dos estudiosos da comissão do Acordo; eles traçam a parte rigorosamente técnica da língua, que, nesse caso, pertence à gramática, e a língua, dona de si, move-se com toda a liberdade, sob a influência dos seus usuários. Não se pode permitir que haja alienação de deveres; se não, qual seria o papel dos doutos que dedicam à língua suas vidas?
    Existe ainda o preconceituoso entendimento lusitano de que nós, os brasileiros, estamos impondo o nosso modo de usar a língua aos portugueses, o que constitui argumento evidentemente fraco. O interessante é perceber que todos esses juízos se mostram falíveis quando se esclarecem alguns conceitos necessários, evitando as confusões que teimam em misturar língua com gramática normativa, com norma-padrão etc. Como já havia dito, é evidente que as mudanças não afetarão os modos de usar a língua; o português continuará a usar o vocabulário e as expressões que lhe são habituais, e o brasileiro também. Dizem, tristemente, muitos em Portugal que estamos a macular a língua de Camões, a enfear a última flor do Lácio etc. É claro a qualquer pessoa com algum siso que são comentários infelizes da parcela muito mimada e pouco arejada de falantes lusitanos.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Comentário: Eu tenho medo é do preocupante silêncio em meio a tanta zoada na tevê brasileira.

        É importante que se divulgue o texto do linque que se segue. O cinismo dos argumentos do conluio midiático que combate haver punição aos que desrespeitam os direitos humanos nos meios de comunicação deve ser mostrado a todos os que ainda prezam pelas liberdades (de fato e em sentido amplo) principalmente na tevê e no rádio. É ainda mais importante frisar o que realmente constitui os princípios da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e do Programa Nacional de Direitos Humanos, para que os desavisados não sofram o proselitismo escuro, mas muito bem maquiado, da grande mídia. É muito importante não ser vítima do silêncio que se mantém na tevê; é evidente a razão por que não se discutem assuntos congêneres nela. Esse texto tem de ser propagado o mais que se possa. O que distorce a realidade é que as grandes corporações midiáticas se defendem usando o discurso de que se quer corromper a liberdade de expressão (!) e de que ela tem de ser defendida a todo o custo. É a conversa mole que se assemelha muito à nefasta Doutrina de Segurança Nacional daqueles tempos (com as suas devidas proporções, claro), que espero que tenha morrido e tenha sido muito bem enterrada em 85. Isso não lembra aquele papo de negar o contrário e de sugestionar, tão comum entre os militares durante a ditadura? Ou só eu é que o vejo assim? Neste século, as ameaças com nova roupagem são esses arrotos ideológicos contra a democracia, muito perigosos e ainda provenientes daquelas bocas fedidas da grande mídia, as mesmas que colaboraram com o sucesso do 1.º de Abril de 64. As táticas agora são outras, muito mais sutis e, portanto, muito mais fáceis de serem consumidas (e como consomem os que adoram os 99% da "nossa tevê"!). Não há mais paus-de-arara* [sic], tambores de óleo, cadeiras elétricas, barris de fezes humanas etc., mas também não se pode dizer que há completude de democracia. E enquanto não houver democracia em sentido amplo, a grita do povo arejado tem de se levantar! A Internet está aí para isso, para esclarecer o mais que for possível e arejar o terreno...


Leia: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/a-grande-midia-unida-contra-a-democracia.

__________
* Não concordo com escrever pau de arara, sem os dois hifens, como pede o VOLP. Nesse ponto, sou declaradamente contrário à má interpretação do texto do Acordo. Aí se confunde sintaxe (a locução) com morfologia (palavra composta).

domingo, 10 de janeiro de 2010

As manchas do livro: O não ser nos destrói.

Que é do ser que se negou em momento impreciso, ou que se tem negado quase diariamente? O ser eu, filho e irmão já não pode ser preterido; as riquezas imarcescíveis não são tão obscuras quanto parecem ou quanto parece ser insólita a felicidade. Nada disso! O descobrir-se é o que o é, é tarefa urgente; somos perecíveis, precisamos de nós prontamente sãos para caçar-nos. A busca não pode ser mais um trabalho de Sísifo, pois não nos querermos é admitirmos que não viemos ao mundo e que somos tão frágeis que não conseguimos compreender muito bem que ser forte, resistente a dores que calam n’alma fundo, é olvidar-se do latente ser eu, o que não se faz por si próprio, mas pela consciência pouca de que se têm de adquirir inteligência, prudência, correção, sensatez, pragmatismo etc. O encontro não se faz quando, fraco de cegueira e resignação, o que tem a busca por mister nem mesmo sabido por si próprio fraqueja e não pode com um trabalho que, parece-lhe, fora feito com o intuito de não se poder concluir. O ser eu é quem sofre com a extrema competência de sermos péssimos em entender a vida.

[naturalmente inconcluso]

Abril, 2009

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

sábado, 9 de janeiro de 2010

Gramática: Duas questões de sintaxe.

     Em 25 de dezembro, respondi a duas questões de sintaxe trazidas por um dos membros do fórum Só Português. A primeira delas trata da significação da preposição para, e a segunda aborda regência verbal. Apesar de simples, as questões permitem breve revisão de alguns temas importantes da gramática escolar. A todos os que fruem das breves revisões gramaticais e do roteiro de estudo que se traça a partir delas, desejo-lhes bom proveito do que está escrito abaixo.

 

"A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença."

10) Assinale a alternativa em que o termo para expressa a mesma circunstância que no trecho.

a) Dedicou-se muito para passar no exame.
b) Embora fosse sempre para a praia, aquela vez era especial.
c) Trouxe para ela um lindo buquê de flores.
d) Para quem estuda, as provas parecem ser mais fáceis.
e) Para agradá-la, não precisa muito, basta ser gentil.

 

Olá, ***. A preposição para introduz adjunto adverbial de opinião, fato que, para alguns, parece incoerente. Os que estranham essa classificação certamente apoiam a ideia de que o termo introduzido por essa preposição é, em verdade, dativo de opinião, ou seja, espécie de complemento verbal por extensão de significado. As gramáticas escolares insistem em que esse termo introduzido por para seja adjunto adverbial de opinião. Siga-se então o que dizem esses livros. Abaixo estão as análises de cada item.

a) Em Dedicou-se muito para passar no exame, a preposição para é índice de função que introduz oração subordinada adverbial de fim. Pode ser substituída por preposições de mesma categoria sem prejuízo de sentido à frase (... a fim de passar no exame).
b) Em Embora fosse sempre para a praia, aquela vez era especial, a preposição introduz adjunto adverbial de lugar. Seria até mais coerente empregar, nesse caso, a em vez de para, pois esta conjunção indica que a estada no lugar de destino é permanente ou duradoura, e aquela sugere que não se gastará muito tempo no lugar a que se dirige.
c) Em Trouxe para ela um lindo buquê de flores, a preposição introduz complemento verbal. Por sinal, esse é um dos poucos casos em que o objeto indireto pode ser introduzido por para. A função de objeto indireto fica clara por poder-se substituir para por a, ou ainda por ser possível a substituição do termo para ela pelo pronome lhe (Trouxe a ela um lindo buquê de flores, Trouxe-lhe um lindo buquê de flores).
d) Em Para quem estuda, as provas parecem ser mais fáceis, tem-se que o termo introduzido por para é dativo de opinião ou oração subordinada adverbial de opinião. Há também quem a veja como oração completiva nominal, por integrar o sentido do adjetivo fáceis. Não se pode condenar nenhuma dessas análises, posto que são todas bem argumentadas. Claramente, vê-se então que é esta a opção correta.
e) Em Para agradá-la, não precisa muito, basta ser gentil, a preposição, como na letra a, introduz oração subordinada adverbial de fim; a seguinte substituição esclarece bem essa verdade: A fim de agradá-la, não precisa muito, basta ser gentil.

 

19) Assinale a alternativa em que a regência verbal está correta, segundo a norma culta.

a) Ele afirmava, aflito, que sempre desejou ao bem de sua filha.
b) Não convenceu a ninguém com o que dizia.
c) Esse foi o caso que me referi durante nossa conversa.
d) São fatos de que todos já se esqueceram há tempos.
e) A decisão coube de um importante juiz.

 

Veja-se agora o tema da próxima questão. É necessária, de imediato, pequena correção sobre o que é, ou deixa de ser, norma culta. Não convém a ninguém definir norma culta, e é muito menos pertinente julgar se um ou outro discurso pertence a ela. O que existe, em verdade, é a norma padrão, que é o modo de escrever usado em textos oficiais e em ocasiões seletas que a exigem. Feitos os esclarecimentos, dou continuidade à questão com as explicações abaixo.

a) Estaria tudo certo se não fosse aquela preposição intrometida em ao. O verbo desejar, na acepção em que aparece, é transitivo direto.
b) A regência de convencer, com acepção de persuadir, diz que esse verbo é transitivo direto. Pode o verbo ser transitivo direto e indireto, sendo, no entanto, o objeto indireto introduzido por de e representado por coisa (fato, ideia etc.). Exs.: Jorge não convenceu a plateia; Joaquim convenceu Maria de que tudo daria certo.
c) O verbo referir-se exige sempre objeto indireto introduzido por a. Desse modo, escrevem-se corretamente Todos se referiam aos acontecimentos recentes, O livro a que Mariazinha se referia não estava à venda, etc. Está claro, portanto, que faltou um a antes do pronome relativo, que tem evidentemente função de objeto indireto.
d) Está tudo correto na opção dê. O verbo esquecer-se, diferentemente de esquecer, exige sempre objeto indireto introduzido pela preposição de. Exs.: Não nos esquecemos do dia em que fomos premiados, Ele esqueceu-se de agradecer-lhe o presente, O palestrante esqueceu o que falaria, etc. Marque-se esta opção.
e) Bom, o verbo caber, na acepção de competir, pertencer, é transitivo indireto, mas não rege objeto indireto introduzido por de. Esse complemento verbal deve encerrar a preposição a. A frase correta seria A decisão coube a um importante juiz.

Espero que te tenha esclarecido as dúvidas, ***. Bons estudos e feliz Natal.

Isso é tudo.

Abraço. Até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.