segunda-feira, 28 de abril de 2008

Poesia: algumas poesias de Augusto dos Anjos.

 

VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão -- esta pantera --Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável, 
Mora, entre feras, sente invevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
o beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga, 
Escarra nessa boca que te beija!

 

A DANÇA DA PSIQUE

O POETA DO HEDIONDO

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo, A alma arde, A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
-- Mãe de esterilidades e cansaços --
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coréia
Pára. O cosmos sintético da Idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto.

Arranco do meu crânio as nebulosas
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

 

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

MINHA FINALIDADE

VÍTIMA DO DUALISMO

Turbilhão teleolófico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptivel
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
-- A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, suluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!

 

Ser miserável dentre os miseráveis
-- Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!

Psique biforme, o Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!

A UM EPILÉPTICO

IDEALISMO

Perguntarás quem sou?! -- ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!

Reclamada por negros magnetismos
Tua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!

Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,

Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!

 

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor quea Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
-- Alavanca desviada do seu futuro --

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

VANDALISMO

BUDISMO MODERNO

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

 

Tome, Dr., esta tesoura, e...corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

PECADORA

A IDÉIA

Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o simb’lo do Pecado.

Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.

No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,

Do destino fatal, presa, morria
Uma noute entre as vascas da agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

 

O MORCEGO

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica dasede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
-- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme -- este operário das ruínas --
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(fonte: poesias extraídas do livro "Eu e outras poesias", 42.ª ed., Editora Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1998.)

Faces, a expressão da alma

Faces, a expressão da alma
Resultados recentes mostram como nosso cérebro reconhece rostos

Quadro do pintor surrealista belga René Magritte (1898-1967): Retrato de Edward James (a reprodução proibida).

O jornalista aposentado Masao Kasai (nome fictício) acordou de manhã, olhou-se no espelho e não se reconheceu refletido. Quem era aquela pessoa? Não identificou a própria face, embora a visse claramente e percebesse que se tratava de um homem oriental, com cerca de 70 anos, dotado de traços que julgava familiares. Andou pela casa e notou que tudo estava normal – todos os objetos em seus lugares. Pensou disciplinadamente no dia anterior e constatou que podia se lembrar de tudo. Aí ouviu a voz de sua mulher no quarto, foi até ela, mas ao encontrá-la... não reconheceu o rosto que estava à sua frente. Algo estava errado. Decidiu procurar um hospital.

De fato, os médicos do Hospital Tenri, em Nara (Japão), constataram que Masao havia sofrido um derrame durante a noite, perdendo a capacidade de reconhecer faces familiares, mas sem apresentar outro sintoma cognitivo digno de nota. Casos semelhantes de prosopagnosia já eram conhecidos da neurologia, e essa condição foi imortalizada por Oliver Sacks em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu . Mas o infortúnio de Masao, relatado em 2001 pelos neurologistas Y. Wada e T. Yamamoto, apresentou uma característica importante que acabou se tornando útil para decifrar de que modo somos capazes de reconhecer tão pronta e facilmente, pela face, as pessoas próximas e as pessoas famosas. É que a hemorragia cerebral que atingiu Masao praticamente restringiu-se a um setor específico do córtex cerebral chamado área fusiforme, e limitou-se ao lado direito do cérebro.

Essa região do córtex cerebral já havia sido estudada há mais de 30 anos em macacos, pioneiramente, pelo brasileiro Carlos Eduardo Rocha-Miranda, que nessa época fazia parte de um grupo de neurocientistas da Universidade Harvard, nos EUA. O grupo havia conseguido identificar neurônios isolados nessa região da parte inferior do córtex cerebral, ativados por estímulos complexos como mãos e faces.

Rocha-Miranda conta, aliás, que tudo ocorreu por acaso, quando um dos pesquisadores passou pela frente do macaco e inadvertidamente ativou um desses neurônios. Passou de novo, e o neurônio sinalizou outra vez. Várias tentativas foram feitas até que o grupo descobriu que o alvo da preferência daquele neurônio em particular era a mão que passava pelo campo visual do animal.

Mãos, faces, objetos complexos – então temos neurônios assim tão especializados? Haveria algum neurônio em nosso cérebro capaz de reconhecer especificamente nosso próprio rosto, o de nossa avó? A discussão que se seguiu a esse trabalho foi intensa, pois era difícil aceitar que poucas células nervosas – chamadas neurônios gnósticos , os “neurônios do conhecimento” – fossem capazes de tamanha especialização.

Os códigos da percepção
A representação de objetos complexos no cérebro – não apenas faces – pode empregar códigos ditos esparsos , quando todo o objeto é codificado por poucos neurônios (um só, no limite); ou códigos populacionais , quando um grande número de neurônios contribui para o reconhecimento do objeto. E ainda: esparsos ou populacionais, esses códigos podem estar agregados em um mesmo setor do cérebro, ou então distribuídos por uma extensa região.

Ambos os códigos têm sido repetidamente descobertos no cérebro dos animais, inclusive o homem: neurônios específicos para o canto da espécie, nos canários, são um exemplo de código esparso bem conhecido. Já o comando dos movimentos precisamente direcionados que os macacos conseguem realizar depende da combinação de muitos neurônios motores ativos, o que é um exemplo de código populacional.

No caso da percepção de faces, os neurônios especializados foram identificados por diversos pesquisadores, sendo assim bem aceitos como uma realidade. Faltava saber duas coisas importantes. Estariam esses neurônios espalhados pelo córtex, ou concentrados em regiões pequenas? O código era esparso ou populacional? A questão é importante, porque neurônios agregados interagem mais facilmente, já que as distâncias são curtas. Neurônios afastados requerem conexões de longa distância, o que necessariamente implica maior lentidão no processamento.

Acima: Imagem de ressonância magnética funcional do cérebro de um macaco, em corte. Os focos amarelos são regiões ativadas por faces, e a linha vermelha representa o microeletródio que captou a atividade neuronal. O gráfico de baixo mostra a atividade neuronal média em resposta a faces e outros estímulos. Os rostos são os únicos estímulos eficazes. Adaptado de Tsao e colaboradores (2006).

O acidente vascular de Masao Kasai indicou que seria verdadeira a hipótese de existirem poucos neurônios (código esparso), mas concentrados em uma pequena região (distribuição restrita), mas a prova só veio há alguns meses, com o trabalho realizado pela equipe de Doris Tsao, da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA.

O grupo utilizou macacos para os experimentos. Primeiro levaram os animais à máquina de ressonância magnética funcional, que permitiu localizar precisamente as regiões ativas quando eles viam faces de outros macacos, ou mesmo de seres humanos. Descobriram três focos em uma região do lobo temporal, o mesmo que havia sido danificado no cérebro do jornalista japonês. A seguir empregaram microeletródios para captar a atividade de neurônios individuais em um desses focos, e o que encontraram foi surpreendente: praticamente todos os neurônios do foco (97%!) respondiam seletivamente a rostos.

Um dado adicional foi relevante no trabalho do grupo americano: a maioria dos neurônios respondia a muitas faces diferentes, muito raramente a uma ou duas apenas. Isso pode significar que não há neurônios isolados especializados na cara da vovó ou da mamãe, e que o reconhecimento desses rostos familiares pode ser obtido pela coordenação das respostas de conjuntos de neurônios especializados em faces. Justamente isso – a cooperação entre os neurônios seletivos a rostos – seria mais eficiente com uma distribuição agregada, que foi exatamente o que os pesquisadores encontraram.

René Magritte, o pintor surrealista belga que tão criativamente representou a nossa percepção das faces, intuiu a importância dessa habilidade: no rosto está a nossa alma, isto é, nossa expressão, nossa emoção, nossa comunicação. Não é para menos que o cérebro dos primatas dispõe de uma área exclusiva para seu reconhecimento.

SUGESTÕES PARA LEITURA
C.G. Gross, C.E. Rocha-Miranda e D. Bender (1972) Visual properties of neurons in inferotemporal cortex of the macaque. Journal of Neurophysiology , vol. 35, pp. 96-111.
O. Sacks (1999) O homem que confundiu a sua mulher com um chapéu . São Paulo: Companhia das Letras.
Y. Wada e T. Yamamoto (2001) Selective impairment of face recognition due to a haematoma restricted to the right fusiform and lateral occipital region. Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry , vol. 71, pp. 254-257.
L. Reddy e N. Kanwischer (2006) Coding of visual objects in the ventral stream. Current Opinion in Neurobiology , vol. 16, pp. 408-414.
D.Y. Tsao e colaboradores (2006) A cortical region consisting entirely of face-selective cells. Science , vol. 311, pp. 670-674.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
27/04/2007

(fonte: cienciahoje.uol.com.br)

Gramática: o verbo fazer, unipessoal ou impessoal?

Há uma figurinha repetida no fórum SOLP: a questão que trata do verbo fazer em orações que dão idéia de tempo. Trato, explicitamente, de expor o que pensam alguns acerca da possível unipessoalidade de tal verbo, sempre relevando o que pensa a maioria dos gramáticos sobre tal caso. Foram duas dúvidas bastante pertinentes que me fizeram escrever sobre a coerente, apesar de bastante incomum nesse caso, unipessoalidade. Cá estão as  perguntas e as respostas:

Faz duas horas que espero por você
Alguém poderia me ajudar? Qual seria a função sintática de que espero por você?

Olá, ***. Essa tua pergunta é bem pertinente, porque ela ainda gera um pouco de polêmica. Eu disse, certa vez, neste fórum que, em orações nas quais aparece o verbo fazer, em acepção de tempo decorrido, o sujeito seria considerado unipessoal por alguns gramáticos, em vez de impessoal. Ex.: Faz dez anos que deixei de beber (suj.: que deixei de beber). Esse raciocínio, apesar de coerente, é um pouco radical, pois a maioria dos bons gramáticos consideram que haja, em verdade, uma oração sem sujeito e que o verbo seja, portanto, impessoal. Tomando como mais apropriado o que dizem esses bons gramáticos, a oração que espero por você de tua citação seria tão-só a oração principal do período composto por subordinação. Outro detalhe que devo salientar é que o verbo esperar, em acepção de estar à espera de alguém ou de algo, não é transitivo indireto, e sim direto. A tua frase seria, portanto, melhor escrita assim: Faz duas horas que espero você. Desse modo, o termo você seria o objeto direto do verbo esperar. Isso é tudo que tenho a dizer. Um abraço, e até outros tópicos.

Em outro tópico, foi melhor explicado o caso em que o verbo fazer, em acepção de tempo decorrido, pode ser visto como unipessoal, mesmo que, torno a lembrar, seja encarado como impessoal por grande parte dos gramáticos. Apesar de a questão do referido tópico ser outra, nele acabo explicando a interpretação da unipessoalidade de tal verbo. Cá está o tópico a que me refiro:

Olá, ***. Vou-te explicar melhor a flexão verbal quando ocorre sujeito oracional. Antes de tudo, verbo unipessoal é aquele que, tendo sujeito, só se usa nas terceiras pessoas, do singular e do plural. Exemplo claro da unipessoalidade verbal são os verbos onomatopaicos: grunir, miar, latir, etc. O verbo também é unipessoal quando ocorre sujeito oracional. Ex.: Convém que voltemos cedo (suj.: que voltemos cedo). Alguns gramáticos consideram o verbo fazer, referindo-se a tempo, como unipessoal; outros o consideram impessoal. Em provas de concursos e vestibulares, deve-se considerá-lo impessoal, apesar de tal discussão. É importante apenas que se note a justificativa daqueles que o vêem unipessoal: eles afirmam que a oração principal do período tem como sujeito a oração subordinada substantiva introduzida, como é de nosso conhecimento, por conjunção integrante que. Ex.: Faz dez anos que Juninho comprou sua bicicleta. (verbo unipessoal: faz; sujeito oracional: que Juninho comprou sua bicicleta). Há equivalência elucidativa com a oração assim reconstruída, substituindo o sujeito oracional pelo pronome substantivo demonstrativo neutro isso: Faz dez anos isso. O gramático que afirma categoricamente a unipessoalidade do verbo fazer é Sacconi, considerado por muitos como radical, por não concordar com algumas posições da NGB. Vejamos o que afirma em uma nota de observação contida em sua gramática Nossa Gramática - Teoria e Prática:

 

1) Consideramos unipessoal, e não impessoal, o verbo fazer seguido da oração iniciada pela conjunção que, a nosso ver integrante. A NGB não trata dos verbos unipessoais, considerando todos os verbos só usados nas terceiras pessoas como impessoais, incorrendo num equívoco imperdoável.

 

Na frase Faz dez anos que deixei de fumar, a oração iniciada pelo conectivo é substituível pelo pronome substantivo isso, o que comprova seu valor substantivo:

 

Faz dez anos que deixei de fumar = Faz dez anos isso.

Perguntou também o caro forista:

Pergunto, a ordem direta poderia ser escrita assim:
"Distinguir os passageiros casuais dos chamados 'ratos de metrô' é muito fácil"?

Quanto à ordem direta que me sugeriste, ela está correta, apesar de a ordem inversa (predicado nominal + suj. oracional) apresentar melhor valor enfático do predicativo do sujeito. ***, espero ter-te ajudado, um abraço deste que te escreve, e até outros tópicos.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Crônica: O fulano-de-tal que fora adotado.

   Assim pensou o fulano-de-tal, semelhante a muitos que crêem viver uma situação de equilíbrio familiar, e o registro por ele escrito é conturbado, visto que ele mesmo, em um momento, tem em si o turbilhão de pseudoconclusões e, em outro, apresenta forte atimia. A avaliação do que lhe sucedeu é feita pela corda trêmula em que se equilibram acrobatas destemidos: o Amor atrabiliário e a Razão tácita. Ela, a corda, é feita de material rijo, que sustenta as estripulias desses dois. Assim nos conta, presto, o fulano-de-tal.

    Eis uma retrospectiva de meus vinte e seis anos, tudo o que me apareceu brusco na memória após a descoberta da adoção: tive boa infância, bons amigos, boa educação e o restante do que não falta à família perfeita; uma perfeição cristalina que, porém, trincou por efeito de uma ressonância que me remete ao momento de meu tão belo rebentar, um tipo não convencional de introdução ao mundo. Preferiria crer eternamente nesse cristal imaculado, produto do medo de meus pais, mas ele, diferente dos demais, era uma pedra frágil, que teria de trincar e, de uma só vez, partir-se em milhares de pedaços, tal foi a força da notícia que me arrebatou tão-só agora, quando estava feliz por assim viver.

    Mas a notícia cruel de minha adoção renderá o final da escrita, agora é melhor tomar por base os motivos da informação tardia; o medo, sim, gerou a morosidade de meu caso e emudeceu, por todos os bons momentos que vivi, qualquer vestígio de atitude reveladora por parte dos que me mostraram o mundo. O que me pareceu límpido e majestoso pode ter sido a angústia dos que me criaram; eles, ao menos, nunca ma demonstraram. Não sei bem se cabe a mim o julgamento da "falha", pois não sei bem se a há e se ela feriria mais um adulto de boa formação ou uma criança que decerto assimilaria que a família não é uma instituição armada pela consangüinidade. Tenho em mente que não há uma fórmula para o sucesso, assim como não há uma para a felicidade, e não haveria, portanto, razão maior para o tipo especial de cisma de que tenho sofrido do que a minha progressão natural, sem choques e sem dramas. O alvo da discussão já não é o menino de ouro que fui, senão um adulto que, por meses, tem-se mostrado taciturno e conversado pouco com a tão prestativa família. Ah! Linhas que se riscam, é a minha vez de fingir! Fazer os meus mestres, que tão bem me conhecem, não notarem sequer o menor ruído de minha digestão, uma feijoada pesada que agora tem de ser degradada à surdina. Talvez seja mais difícil para mim fingir o mastigar do abalo, da nova idéia e de um pouco de desespero.

    Como toda digestão, a nutrição é certa. O resultado da força que me feriu a consciência com descomunal ferocidade, as palavras que saíram fortes e reveladoras da pequena e bem pintada boca maternal e toda a situação que daí decorreu foram a minha atual anestesia. O meu moral inquieto e preocupado com a reação de minha família por eu assim agir, meio inerte e um pouco inerme às vicissitudes, mostrou-me uma rica digestão, uma digestão de valores, modelos, fórmulas e paradigmas que me confirmou que a família não é uma instituição armada pela consangüinidade.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Vírgulas Fatais

O VALOR DA PONTUAÇÃO

Um homem rico, sentindo-se morrer, pediu papel e pena, e escreveu assim: "Deixo os meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres". Não teve tempo de pontuar - e morreu.

A quem ele deixava a fortuna que tinha? Eram quatro os concorrentes.

Chegou o sobrinho e fez estas pontuações numa cópia do bilhete: "Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate! Nada aos pobres!"

A irmã do morto chegou em seguida, com outra cópia do escrito; e pontuou-a deste modo: "Deixo os meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho! Jamais será paga a conta do alfaiate! Nada aos pobres!"

Surgiu o alfaiate que, pedindo a cópia do original, fez estas pontuações: "Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres!".

O juiz estudava o caso, quando chegaram os pobres da cidade. Um deles, mais sabido, tomando outra cópia, pontuou-a assim: "Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do alfaiate? Nada! Aos pobres."

Assim é a vida, nós é que colocamos os pontos e isto faz a diferença. 

A contribuição acima é de Luiz Norberto Damiani, membro do MNDLP em Santos/SP, transcrevendo em 15/4/2000 mensagem recebida de Mário Canelas Jr.

Meu pai contava uma história assim:

Dizia que no Pará houve um levante popular. O comandante das forças armadas telegrafou ao Presidente da República relatando o fato e, no fim, perguntou - reajo ?
O Presidente respondeu assim: Não, tenha ponderações.
O telegrafista esqueceu da vírgula. Em razão disto, morreram várias pessoas.

Aristóteles

Contribuição de Aristóteles, da Paraíba, participante da lista de debates Idioma, mantida pelo MNDLP na Internet, enviada em 18/4/2000.

Reprimido versus recessão, ou a vírgula que salvou o herói

Num reino distante e antigo, uma criatura terrível ameaçava a tranqüilidade do povo. Era tão assustadora que todos começaram a chamá-la Recessão. Preocupado com os estragos que a Recessão causava ao Reino, o rei convocou Reprimido, um manjado herói, para liquidar a fera. Reprimido partiu, levando sua grande arma: o cartão de crédito. Alguns dias depois, o rei recebeu um telegrama no castelo: "A Recessão Reprimido matou". O rei ficou muito triste e decretou uma semana de luto em homenagem a Reprimido, que imaginava morto. Mas qual não foi a surpresa de todos, quando no dia seguinte Reprimido apareceu vivinho da silva. E explicou ao rei que tudo era culpa do telegrafista. Na pressa de mandar o telegrama, ele se esquecera de uma vírgula. A mensagem certa era: "A Recessão, Reprimido matou."

Extraído de "Língua não tem osso, ouvido não tem porteira, pensamento não tem fronteira", revista SuperInteressante Jovem Especial, Editora Abril, novembro de 1990.

Oráculo ambíguo -  Na antiga Grécia havia um célebre oráculo, que respondia com segurança a todas as perguntas que se lhe fizessem sobre o futuro, que para nós hoje já é passado. Um pai aflito, um dia, perguntou ao oráculo se o seu filho, que devia partir para a guerra, regressaria são e salvo.

O oráculo respondeu por escrito: "irá virá nunca morrerá nas armas".

O pai ficou satisfeitíssimo com a resposta. Mas a sua alegria não durou muito tempo. Logo depois de dois meses recebeu a dolorosa notícia da morte do filho em combate. Desesperado, foi ao oráculo, a fim de reclamar contra o engano da profecia. O oráculo lamentou muito o que havia sucedido, mas fez ver ao velho pai que nada tinha a corrigir. A sua professia estava certa e havia se cumprido. 

O que ele respondera era o seguinte: "Irá. Virá nunca. Morrerá nas armas". E não: "Irá. Virá. Nunca morrerá nas armas", como julgava o pai.

Extraído de Almanhaque para 1949 ou Almanhaque d'A Manha - Primeiro Semestre
produzido por Apparício Torelly, o Barão de Itararé (1895-1971).

Lembra, por sua vez (em 6/2/2001, na lista de debates Idioma), o internauta Luiz Ezildo: 

"Tem aquela histórinha do cartorário que escreveu a respeito de um erro e tentando consertá-lo: "...quando digo digo, não digo digo, digo Diogo ..."

Em uma lista de debates sobre negócios, a Widebiz, a internauta Márcia Gama citou, em 24/1/2001:

Dizer "Quem canta, seus males espanta" é muito diferente de dizer "Quem canta seus males, espanta". 

No dia seguinte, na mesma lista, o internauta Lucio Wandeck respondeu contando uma história:

Não sei se é verdade, mas conheço a seguinte história.

Lá pelos idos de mil oitocentos e tantos, a atual cidade de Manaus (então pertencente à Provìncia do Pará) rebelou-se contra o governo. Foram deslocados de Belem dois navios de guerra que fundearam em frente ao lugarejo. O comandante, após comprovar a insurreição - chefiada por padres - enviou mensagem à Corte: 
- Devo bombardear Manaus?
A Corte respondeu:
- Não, poupe Manaus.
Porém o telegrafista achou desnecessária a vírgula!

E há também a velha história do rei impiedoso e do escrivão clemente. Um desafeto político do rei estava preso, aguardando a sentença do rei. Perguntou-se ao soberano se o condenado poderia contar com a bondade real. Respondeu o rei: "Não, mate!" Mas o esperto escrivão retirou a vírgula no documento que levou à assinatura do soberano. Assim, a ordem que os guardas receberam foi: "Não mate!". E o prisioneiro foi salvo...

(fonte: http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010302.htm - Movimento Nacional em Defesa da Língua Portuguesa)

sábado, 12 de abril de 2008

Gramática: diferença entre adjunto adnominal e complemento nominal.

Uma das dúvidas mais comuns em análise sintática é a relativa à distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal. Perdi a conta de quantas vezes já se perguntou isso aos diversos professores de Gramática de Português que tive. A dúvida é, sim, justa, pois a diferença é realmente sutil e exige do estudante mais atenção. Finalmente, no utilíssimo fórum SOLP, chegou a bendita questão, e prontamente, até por identificação com tal questionamento, tratei de responder a ela. Cá está o tópico:

Alguém sabe bem resumidamente a diferença entre adj. adnominal e compl. nominal?

Olá, ***. Excelente, tua pergunta. Essa é uma das questões mais comentadas de toda a sintaxe. Inicialmente, faremos a distinção em relação aos termos que regem um e outro. Se o termo regido por preposição estiver ligado a advérbio ou a adjetivo, será sempre complemento nominal. Ex.: temeroso da derrota; longe dos amigos; cheio de tralhas, independentemente de sua ordem. A atenção deve ser máxima quando o regente for um substantivo, pois assim poderemos ter um adjunto adnominal ou um complemento nominal. Se o substantivo for concreto, teremos adjunto adnominal. Ex.: casa de taipa; pano de seda, etc. Se ele for abstrato, teremos de analisar desta forma: tendo o termo regido aspecto passivo em relação à ação contida no nome (sim, os substantivos abstratos possuem verbos correspondentes: ataque - atacar, pedido - pedir, caça - caçar, desgaste - desgastar, abalo - abalar, castigo - castigar, etc.; são, portanto, deverbais, ou seja, sofreram processo de formação denominado derivação regressiva), ele será complemento nominal. Ex.: pedido de ajuda: ajuda foi pedida; necessidade de comida: comida é necessitada. Será mais elucidativo se usarmos como exemplo uma oração, por exemplo: Clementina nunca relevou sua necessidade da paz celeste (Clementina necessita a paz celeste; a paz celeste é necessitada por Clementina). "O complemento nominal corresponde a um complemento objetivo" (Luiz Antonio Sacconi, Nossa Gramática - Teoria e Prática, 23.ª edição, pág. 321). O adjunto adnominal possui sentido ativo acerca da ação contida no substantivo. Ex.: "A redação do rapaz" (o rapaz redigiu a redação; a redação é sua); "A explicação do professor" (o professor explicou; a explicação é dele); enquanto que, em "A redação das revistas", temos complemento nominal (As revistas são redigidas; alguém redige as revistas). "O adjunto adnominal corresponde a um complemento subjetivo" (Luiz Antonio Sacconi, Nossa Gramática - Teoria e Prática, 23.ª edição, pág. 321). ***, espero ter-te ajudado. Um abraço, e até outros tópicos.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Crônica: O Festival de Besteira Que Assola o País.

O Festival de Besteira Que Assola o País

Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

Disse Stanislaw no FEBEAPA 2:

"É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País. Pouco depois da "redentora", cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem "otoridades", sentindo a oportunidade de aparecer, já que a "redentora", entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo — alguns apontavam dois dedos duros, para ambas as coisas), iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar".

Vamos a algumas amostras:

"O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros" (Deputado Índio do Brasil, Assembléia do Rio).

O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era preso pelo 23.º Batalhão de Caçadores, acusado de ter ofendido "um símbolo nacional", só porque disse que o pescoço do Marechal Castelo Branco parecia pescoço de tartaruga e logo depois desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa.

Cerca de 51 bandeiras dos países que mantêm relação com o Brasil foram colocadas no Aeroporto de Congonhas. O Secretário de Turismo de São Paulo — Deputado Orlando Zancaner — quando inaugurou a ala das bandeiras, disse que "era para incrementar o turismo externo".

Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em defesa da classe teatral. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito de "viva a Democracia". O senhor Ernani Sátiro na mesma hora retrucou: "Insulto eu não tolero".

O Diário Oficial publica "Disposições de Seguros Privados" e mete lá:   "O Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas atribuições, resolve (...), "Cláusula 2 — Outros riscos cobertos — O suicídio e tentativa de suicídio — voluntário ou involuntário".

Em Niterói o professor Carlos Roberto Borba iniciou ação de desquite contra a professora Eneida Borba, alegando que sua esposa não lhe dá a menor atenção e recebe mal seus carinhos quando é hora de programas de Roberto Carlos na televisão. A professora vai aprender que mais vale um Carlos Roberto ao vivo que um Roberto Carlos no vídeo.

Colhemos num coleguinha do Jornal do Brasil:
"O General José Horácio da Cunha Garcia fez uma firme apologia da Revolução e manifestou-se contrariamente às teses de pacificação, bem como condenou o abrandamento da ação revolucionária. O conferencista foi aplaudido de pé". O distraído Rosamundo leu e, na sua proverbial vaguidão, comentou: "Não seria mais distinto se aplaudissem com as mãos?".

Enquanto o Marechal Presidente declarava que em hipótese alguma permitiria fosse alterada a ordem democrática por estudantes totalitários, insuflados por comunistas notórios, quem passasse pela Cinelândia no dia 1.º de abril depararia com o prédio da assembléia Legislativa totalmente cercado por tropas da Polícia Militar. Na certa, a separação de poderes, prevista na Constituição, passará a ser feita com cordão de isolamento e muita cacetada.

Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): "O Dr. Josias Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um IPM (Inquérito Policial Militar) por haver passado um telegrama para sua sobrinha Loberi, em Salvador, comunicando-lhe que a bicicleta e as pitombas tinham seguido. Houve diligencias pelas vizinhanças, parentes foram procurados e outras providências tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o despacho telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos "bicicleta", "pitombas" e "Loberi", que "deviam ser de um código secreto".

"Os jornalistas deveriam apanhar da polícia não só durante a passeata, mas antes também. Eles são incapazes de reconhecer o valor da polícia. Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial". Essa declaração foi feita pelo Secretário de Segurança de Minas Gerais, coronel Joaquim Gonçalves.

A peça "Liberdade, Liberdade" estreou em Belo Horizonte e a Censura cortou apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão: "Mulher de vida fácil", o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil. Ninguém mais tá levando vida fácil.

Segundo Tia Zulmira "o policial é sempre suspeito" e — por isso mesmo — a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: "A vítima foi encontrada às margens do riu sucuriu, retalhada em 4 pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".

Em Campos (RJ) ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolph Hitler, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do julgamento Hitler foi absolvido.

A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o Delegado de Costumes (inclusive costumes femininos), declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital mineira "para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e saias curtas". E acrescentava furioso: "A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre". Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva — que fez um discurso na Câmara sobre o tema "Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira".

Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira, que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte Ramos — figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar "Reitor" — nomeava um professor para a cadeira de Direito Penal.  O ilustre lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: "A ciência do Direito é aquela que estuda o Direito".

A Igreja se pronunciou, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobre recentes publicações pretensamente científicas, "que abordam problemas relacionados ao sexo com evidente abuso". O documento não explicou se o abuso era do problema ou se o abuso era do sexo. Em compensação, nessa mesma conferência, Dom José Delgado, Arcebispo de Fortaleza, dava entrevista à Agência Meridional sobre pílulas anticoncepcionais, uma pílula formidável para fazer efeito no Festival de Besteira. Como se disse bobagem sobre o uso ou não da pílula, meus Deus!!! Dom Delgado, por exemplo, dizia: "A protelação do casamento é a única conclusão a que chego, atualmente, para a planificação da família e o controle da natalidade. E, depois disso, só existe um caminho seguro: o da continência na vida conjugal". Como vêem, o piedoso sacerdote era um bocado radical e queria acabar com a alegria do pobre. Ainda mais, falando em sexo e em continência na vida conjugal, deixou muito cocoroca achando que, dali por diante, era preciso bater continência para o sexo também.

Textos extraídos dos livros "O Festival de Besteira que Assola o País", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1966, "2.º Festival de Besteira que Assola o País", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, e "Na Terra do Crioulo (A máquina de fazer) Doido - FEBEAPA 3", Editora Sabiá - Rio de Janeiro,  1968, págs. diversas.

(fonte: releituras.com)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Crônica: Sou um pé. E você quem é?

    Em minha denotação, não sou alvo de atenção alguma. Tenho como fiel companhia os sapatos surrados de meu dono, que por desleixo já me deixou entregue a micoses terríveis. Em momentos de lazer, encontro o azulejo frio do terraço da propriedade do que me guia (ou será eu quem o guio?) e lá entro a pensar sobre o nome que me deram: penso muito sobre quão útil sou e quão útil é o meu nome, visto que esse momento é o único em que não transporto o meu dono; ele senta-se em uma vasta poltrona e espalha-me sobre o chão. Não me gabo por suportar o peso e até as mágoas do homem hodierno, senão o faço por conta do nome que me dão: uma palavra tão poderosa, cheia de significados, um termo que vai muito além do que posso imaginar.

    Ferretearam-me, desde que me entendo por pé, a minha definição primeira, o verbete contido nos bons dicionários; sim, sou uma mera estrutura anatômica, mas o meu nome, não. Ele pode ser um dos produtos mais emblemáticos da criatividade de um povo que sabe cuidar bem de sua língua, conferindo-lhe o mais puro teor vernáculo. O Brasil, terra que piso com gosto, e seus bons falantes, aos quais adquiri profunda admiração, revelaram-me a riqueza que constitui o idioma que falam, um ouro resultante da mistura de termos indígenas, africanos, lusitanos e de tantas outras origens, que tão-só valem ao preencher uma lacuna de nosso léxico, fato raro devido à diversidade lingüística que o erige.

    Mas voltemos ao meu nome (empolgo-me quando trato da língua dos homens)! Ele é alvo constante da bendita catacrese, que é condenada por muitos gramatiqueiros que seguem o Beletrismo e afirmam-na como metáfora desgastada, sem muita criatividade. Ora! Muito deles condenam o uso de tal recurso baseados no fato de que o vício reside na impropriedade etimológica e valem-se desses casos pouco importantes, em que o étimo da palavra é realmente corrompido, para rechaçar o recurso real das palavras presente na boa e criativa catacrese. As palavras "terraço" e "azulejo", presentes no início deste texto, já foram até crucificadas por esses maus cultivadores da língua, que as julgaram tão-só presas ao substantivo "terra" e ao adjetivo "azul", respectivamente; assim revelam desconhecer os seus étimos verdadeiros, residentes no francês (terrasse) e no árabe (zuleij). Então, é melhor que não me venham esses mal letrados condenar o nome que tenho e de que tanto me orgulho. Dos pés que chutam aos pés de laranja, pitomba, abacate, etc., sou, junto ao meu nome, cheio de riquezas.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

Malvados: Felizes assim.

(fonte: malvados.com.br)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.