sábado, 18 de fevereiro de 2012

Crônica: Baiacu do Beco da Mijada.

Baiacu do Beco da Mijada

Gustavo Henrique S. A. Luna

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos

”Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

”O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

”O bicho, meu Deus, era um homem.”

(O Bicho, de Manuel Bandeira, em 27 de dezembro de 1947)


    O retinir do gavião nas pedras escondidas do mato rasteiro. Torado no grosso, cara gorda, ensebada, a barba desleixada, a falta dos dentes e um olhar ressabiado formam um conjunto sem vida própria que empunha o instrumento com que ceifa o silêncio por detrás da extinta estação ferroviária. Uma camisa de candidato e uma manga rasgada, um jeito manco e enfezado de se mexer contra o vento e a fedentina urinosa de um ambiente só por ele lembrado.
    Quando a madrugada se entregava, também se rendia a um canto inexistente da estação, numa posição fetal, de quem espera regredir um dia ao estado nonato, seu único vínculo humano. Um lençol tingido de barro e sangue e um ventre de corrupção, os dois únicos refúgios da morte, a única lembrança humana que tem. E segue amealhando o resto de sonho que nunca existiu, com força, franzindo a testa grossa, suada e rombuda, num esforço vão de reencontrar o fio de vida que o pôs no mundo. A tarde acorda um corpo de bicho, insensível, e sai em busca do resto, do podre dos outros, num comensalismo cíclico.
    O primeiro contato com a vida escorrendo vermelha nas mãos veio rápido, num golpe, cheirando a mijo, o gavião no pescoço fino de um drogado. Acordado pelo riso cretino de um arruaceiro e um jato quente na cabeça, escorada num paralelepídedo. Uma madrugada desfeita, sem o golpe nas pedras, uma experiência nova e contagiante: um pescoço. E se via morrendo junto àquele corpo cheirando a maconha, nos olhos distantes, vermelhos. As mãos, o ventre, os olhos. E sentiu-se novo, enxuto, um pouco mais desligado do mundo.
    E, desde então, não se ouviu mais o retinir das pedras.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.