quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Poesia: O pitoresco papel dos bichos na poesia popular nordestina.

image     Quem nunca se riu daquela bicharada toda, feito gente, na música Siri jogando bola, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas? Pois digo que o antropomorfismo da fauna sertaneja, com o propósito de fazer rir, não é novidade em poesia. No séc. XIX, poetas populares do quilate de Firmino Teixeira do Amaral e de Leandro Gomes de Barros, além do famoso repentista Luís Dantas Quesado, idolatrado por folcloristas, e de outros poetas menos conhecidos, já haviam composto verdadeiras gemas do pictórico poético da animalada sertaneja.
    Não me arrisco a supor que os dois compositores a que fiz referência tenham sido, de certo modo, influenciados por esses menestréis do sertão. Talvez tenham entrado em contato com algumas décimas desses vates, tamanha a similaridade da composição dos bichos e suas atitudes, humanadas. Vale lembrar que Zé Dantas, além de compositor e poeta, também era folclorista, o que torna a hipótese ainda mais provável.
    Vejam vocês essas décimas de autoria atribuída a Luís Dantas Quesado, registradas pelo folclorista cearense Leonardo Mota:

Vi um teú escrevendo,
Um camaleão cantando,
Uma raposa bordando,
Uma ticaca tecendo,
Um macaco velho lendo,
Cururu batendo telha,
Um bando de rã vermelha
Trabalhando num tissume,
Vi um tatu num curtume
Cortando couro de abelha.

Vi um quati marceneiro,
Vi um furão lavrador,
Vi um porco agricultor
E um timbu velho ferreiro…
Um veado sapateiro,
Caitetu tocando buso,
Punaré fazendo fuso,
Aranha tirando empate,
Vi um besouro alfaiate
Cortando roupa de uso.

Vi um peba fogueteiro
Soltando fogo do ar,
Vi papa-vento mandar
À rua trocar dinheiro;
Carrapato redoleiro
Comendo farofa pura,
Um bando de tanajura
Empregada num café,
Vi um percevejo em pé
C’um grajau de rapadura.

Vi um peixe de chocalho,
Formigão de granadeira,
Eu vi camarão na feira
Comprando queijo de coalho;
Vi calangro num trabalho.
Lambuzado em mel-de-furo,
Vi duas vibras num muro
Conversando em Monarquia,
Imbuá na freguesia
Tomando dinheiro a juro.

Vi mosca batendo sola,
Mucuim tocando flauta,
Caranguejo de gravata
E cobra jogando bola;
Vi pulga tocar viola,
Tamanduá engenheiro,
Guariba tocar pandeiro,
Vi um mosquito tossindo,
Uma formiga parindo:
Procotó era o parteiro…

Vi um morcego oculista
Cachorro vendendo cana,
Jaboti de russiana
E um gafanhoto dentista;
Urubu telegrafista
E gato tabelião,
Carneiro na Relação,
Um bode num escritório,
Caçote de suspensório
Eu vi fazendo um sermão.

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    Outro poeta que tratou dos bichos que falam, como intitulou Leota um dos capítulos do Violeiros do Norte, de onde retirei a passagem, foi o vate Jacó Passarinho, cantador cearense, de Mutamba, cuja décima está registada abaixo:

Eu vi um lacrau de dente
C’um cinturão na cintura,
De um quarto de rapadura
Vi grilo fazer presente…
Vi um aruá contente
Mangando dum velho gato,
Vi morcego virar rato,
Vi cobrar cortar vassoura
Vi barata, de tesoura,
Cortando a barba dum pato.

     Outro registro, de semelhante valor pitoresco, coletado pelo folclorista, são estas duas décimas do cego José Tenório:

Vi minhoca destemida
Arregaçando a munheca,
Porque, jogando sueca,
Quase perde até a vida…
Vi piaba enfurecida,
No rio gritar: “Não pode!”
Porque se dispunha o bode
A se banhar todo nu,
E vi ser preso o muçu
Por ter raspado o bigode…

Da venta dum mucuim
Vi sair dois bois urrando,
Adiante estavam brigando
Por um talo de capim…
Depois chegou o sonhim,
Fazendo careta à gente,
Caindo, quebrou um dente,
Bem na biqueira da casa,
O zabelê bateu asa,
Se rindo voou, contente…

     Se vasculharmos mais fundo no baú da literatura de cordel, certamente aparecerão outros casos parecidos. A parte inicial do capítulo Os bichos falam, do livro Violeiros do Norte, de Leonardo Mota, pode ser lida no saite Jangada Brasil, através deste linque.


(fonte: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1976. 259 págs.)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.