sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Crônica: Bicho-do-mato.

Bicho-do-mato

Gustavo Henrique S. A. Luna

p04     Sou um bicho-do-mato. Agora sei que sou. Depois de tanto teimar que não, percebo que o que mais faço é assumir a postura de um bicho-do-mato. Seja na saída desazada, em que a conversa não se faz fluida, em desarmonia com o assunto discutido pelos demais que me acompanham, seja no modo acabrunhado como cumprimento os outros, como economizo no jeito de expor afabilidade. Costumava me chamar assim um tio quando, ainda muito novo, com meus seis ou sete anos, em meio a uma roda de parentes, sempre muito barulhentos e numerosos, me expunha, por livre e espontânea pressão dos pais. “Ei, bicho-do-mato! Vem cá!”, e me puxava e me punha no colo, com a simpatia de homem falante, piadista e bom.
    Era todo o cuidado que tinha com o desconhecido, com o inesperado, com o exagero dos ânimos. Era uma gente que ria demais, que ria de tudo, e eu sempre muito sério, sem entender muito bem de onde vinha toda a graça. Um menino, de seis anos, e sério. Quinha era que dizia a Dedé: “Esse teu menino parece um velho. Vi ele nesse instante. Passou, sem camisa e descalço, com a testa franzida, rumo à bodega de Seu Chico. Parecia um hominho.”. Essa seriedade era só de fachada. Ia danar a comprar picolé de limão, fiado, na conta de meu pai. Era um estrago que lhe fazia durante quase todas as tardes de futebol trave-fechada, no calçamento da rua onde vivi parte de minha infância. A rua era a São Francisco, aqui em Crato mesmo. Nesta cidade, em Juazeiro e em Barbalha, além de hospital, tem muita rua com nome de santo: é São Pedro, São Paulo, Santo Antônio etc. E seguia correndo com os dedos grudentos, pés descalços, tomando posição nos embates acalorados desses fubebóis de bico de pedra. Mas era um bicho-do-mato seletivo: com os comparsas da infância compartilhada, ficava à vontade para um rachinha, para as conversas leveiras, regadas a piadas e histórias de sacanagem que os mais velhos contavam; para uma gente diferente, efusiva demais, era a personificação da desconfiança, era o não-saber-o-que-dizer.
    Numa dessas, estava com meu pai, fazendo não sei o quê, talvez lhe aproveitando a companhia para pedir alguma besteira pra comer, na bodega do finado Chico Henrique, homem bom e comerciante ainda melhor. O pai jogava baralho com os camaradas, e eu ficava por perto, de olho no carteado, acerando a minha intenção pidona, até que lhe saísse a frase incomodada: “Que é que tu quer, menino?!”. Foi justo nesse dia que tive de deixar de lado o incômodo do encabulamento, com o dever da palavra, para delatar um criminoso. Tarefa das mais árduas, já que o meliante era barra-pesada e estaria, naquela ocasião, furtando ao velho Chico, querido por todos daquelas bandas. Era um frangote, recém-ingresso na adolescência, escondido debaixo do balcão da bodega, descamisado e com o calção verde cintilante cheio de pratas e de cédulas. Primeiro, a intimidação quando vi aqueles dois olhos ameaçadores, se arreminando por minha afronta de tê-los arrostado; depois, o indicador em riste, no meio do rosto que se coadunava com o negrume debaixo do balcão, pedindo silêncio, aliás, exigindo, sob a ameaça de me fazer qualquer mal posterior. E a ameaça era real: ele me apontou e, em seguida, bateu o punho cerrado na mão espalmada, como quem diz: “Eu te pego, seu bostinha!”. Sabia bem quem eu era e onde costumava andar e brincar. Apesar da convicção que assumira, planejei bem como haveria de entregar o criminoso. Tinha de delatar o filho-de-uma-égua de um jeito ou de outro, mas não podia ser assim, de cara, até porque, em se sabendo notado, à primeira atitude de delação que esboçasse, ele teria sucesso em fugir pela saída mais próxima da bodega, sem ser reconhecido, ligeiro feito coice de bacorinho.
    Não tardaria e meu pai teria de deixar o carteado, os amigos e a bodega pra levar o pão do jantar. Esperei então que isso acontecesse. Fui saindo e, sumindo do campo de visão do moleque, entreguei a situação a meu pai, que, disfarçadamente, ou melhor, que, escrotamente, voltou à bodega, fincou pé em frente à portinhola do balcão e disse a Seu Chico: “Chico, e esse menino zambeta debaixo do balcão, quem é?”. Pronto, nisso foi desfeito o furto. Depois de uns tabefes, o menino saiu ainda aluado de tanta mãozada que levara. Ainda balbuciou, em meio aos tabefes que levava e à saraivada de nomes feios que dizia, o motivo do furto. Usaria o dinheiro para quitar uma dívida que tinha com o sorveteiro Raimundo, homem bom e de bom papo que passava quase todas as tardes na São Francisco e que era conhecido por, a bem dizer, todo o mundo do bairro. Era ele, o carrinho e a voz de sorveteiro aboiador, gritando como quem pede passagem: “Sorveteiro!”. Gritava bonitamente, como quem tangia gado.
    Mas isso tudo muda com as exigências futuras. Envelheci, mas não muito. O espírito ainda está nos trinques, como o do hominho. Quando se tem de comunicar de modo pelo menos razoável, a gente desata o nó da fala e diz o que tem de ser dito, como quem tem a difícil tarefa de apenas informar. A gente objetiva as ideias na fala, sem se deixar enganar pelo que mais poderia ser dito.
    Conversando, outra vez, com uma amiga, por telefone, ela me passou o neologismo cheio de graça e, ao mesmo tempo, temperado de sensatez: extrovertímido. Foi isso que passei a ser desde que a comunicação presta e incisiva passou a ser a regra. Hoje sou um bicho-do-mato extrovertímido.

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.