segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Gramática: Sobre gramática, língua e preconceito linguístico.

     Voltando às atividades neste blogue, trago ao visitante texto que escrevi em 26 de julho deste ano, no nosso fórum Só Português. Em exame ligeiro da ocorrência duma expressão muito comum, fiz questão de deixar claro quão crédulos são os estudantes caturras do Português, os que seguem os ditames seculares dos dinossauros da gramática. Trato justo da confusão que se faz quando se discutem língua e gramática. Busco aclarar quão virtual é a língua que os mesmos dinossauros dizem ser a falada no Brasil, uma vertente petrificada do idioma, presente apenas nos clássicos de nossa Literatura e nas gramáticas escritas por esses gramáticos. O colega de fórum havia perguntado se o correto seria escrever e falar mal e porcamente ou mal e parcamente. Perguntando sobre a correção e a frequência dessas formas, ainda teceu questão, baseada em opinião certamente atingida por preconceito linguístico. Perguntou se alguém achava que a segunda forma (mal e porcamente) é típica de gente do campo. Bom, esse assunto é delicado e ainda muito mal compreendido pelos que estudam o Português; é, aliás, tema muito pouco ventilado, o que o torna ainda mais preocupante. O preconceito linguístico tem de ser discutido seriamente e suas consequências têm de ser compreendidas por todos os falantes do Português. Abaixo está a resposta que escrevi ao confrade de fórum.

Prezado ***:

O exemplar, a forma tida como correta pelas gramáticas, é mal e parcamente. Bom, quanto à correção e à frequência, não há muita homogeneidade, não. A forma mais alastrada, mais comum, é justamente a "incorreta" (mal e porcamente). Se pesquisares no Google o número de entradas para uma e outra forma, verás que mal e porcamente é assustadoramente mais comum do que a forma defendida pelos gramáticos. Para o modelo exemplar (mal e parcamente), aparecem 10.600 entradas, enquanto que, para a outra forma, a basta quantia de 371.000 entradas, ou seja, há 35 vezes mais registros da forma condenada. Será, então, que mal e porcamente não existe!?

Tratemos agora de outro assunto: preconceito linguístico. É importante não engastar cegamente no seu papel de falante a semente daninha da defasada gramática escolar de hoje (refiro-me a todas as que tanto custam ao bolso dos estudantes do ensino básico e muito os fazem sofrer). Ninguém tem de sofrer para aprender a se comunicar, ninguém deve sofrer a gramática para tanto (isso é evidente; não é papo científico, é fato palpável). Comunicação é atividade intrínseca do homem, e por isso é demonstração de ignorância acreditar que comunicar-se bem depende do bom uso de regras gramaticais. A grande confusão que se faz é confundir a língua com os ditames da gramática. Todo falante tem de ter consciência de que há variedades na língua; ninguém tem de gozar da própria ignorância falando conforme gramática que não reflete realidade alguma. Arroubos de ignorância, como negar a existência da forma mal e porcamente, é tão anticientífico como acreditar obstinadamente que o homem não foi à lua, que a Terra é plana, que o nosso planeta é o centro do universo etc. Não faço apologia do vale-tudo defendido por muitos linguistas; o que não pretendo, entanto, é negar-me coisas que meus olhos veem diariamente. É importante, se não urgente, alterar o modo como se ensina gramática e o que é ensinado por ela. Não me refiro a inserir, nas gramáticas, formas estreitamente dialetais, usos próprios da fala e quejandos, até porque, como já havia dito, gramática é bem diferente de língua. Engana-se bastante quem acha que gramática é o corpo de regras que determinam como a língua é utilizada. A gramática reflete apenas parte bastante tímida da imensidão que é a língua, ou seja, mostra apenas o funcionamento da tão ventilada norma-padrão. Expressões como falar de jacu, português de doméstica e outras aberrações têm de ser varridas das atitudes linguísticas de cada falante. A pouca consciência linguística dos falantes, associada à atitude criminosa de muitos "donos da língua", que aparecem, com toda a verve de enganador inveterado, na mídia sedenta, é a força motriz que perpetua a situação decadente do ensino do Português no Brasil e que engasta nas mentes cativas o preconceito linguístico, talvez o mais invisível dos preconceitos. A invisibilidade talvez se justifique: quem deveria contribuir com a desmistificação do embuste que se faz da língua é justo quem mais o encobre: a mídia, que apregoa ter por honroso mister a utilidade pública, que, nestes tempos, não tem sido atitude útil e, muito menos, pública. Os linguistas sérios, que sabem plenamente da realidade do ensino do Português, estão, portanto, parcialmente manietados, no que se refere a levar esse preconceito à tona, à percepção dos brasileiros. Caso queiras, ***, saber mais do assunto, lê o livro "Preconceito Lingüístico — O que é, como se faz", de Marcos Bagno, um dos mais incisivos combatentes desse preconceito, que, por sinal, reflete outros: social, racial etc. Então, resumindo, o recado que deixo é que devemos, sim, conhecer a norma-padrão, a língua que é chamada exemplar por Bechara, para, antes de tudo, nos libertar das teias que nos prendem apenas a pequena parte duma entidade enorme e vivaz. Precisamos compreender bem a norma-padrão para atender à necessidade de conhecimentos vários: ter acesso ao que escreveram os clássicos da Literatura, ao que consta dos livros técnicos etc. Temos, entanto, de ser suficientemente livres e sábios para compreender todos os que falam a nossa língua, e por isso é necessário que se valorizem todos os falares do brasileiro. Sejamos, portanto, "poliglotas dentro de nossa própria língua".

Abraço. Até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.