sexta-feira, 3 de abril de 2009

Gramática: Emprego do infinitivo flexionado e do não-flexionado.

Recentemente, surgiu, no fórum Só Português, uma das questões mais ventiladas da Gramática: o emprego do infinitivo. De há muito, os falantes hesitam em flexionar ou não essa forma nominal. Há, na literatura, muitos casos de vacilação e tantos outros em que, por conta do estilo do escritor, se corrompem algumas normas. No tópico, listei algumas recomendações que dirigem o emprego e se baseiam nas abonações literárias de autores consagrados. Antes, gostaria de aclarar o motivo de minha ausência neste blogue (foram dois meses sem nenhuma postagem): não tive ânimo para escrever por conta do baixo moral causado por fatos recentes e tristes. Abaixo segue a pergunta do forista e a minha resposta.

No contexto em que ocorre, o emprego da flexão de plural em "serem" (R.15) é opcional segundo as regras gramaticais, podendo, portanto, a forma "serem" ser substituída pelo singular correspondente: ser [referência a texto presente em questão de prova do concurso do TRT 9.ª Região, executado pelo CESPE/UnB em 2007]. Alguém pode me ajudar com isso?

Olá, ***. Antes de tratar da questão, é importante saber que empregar ou não o infinitivo flexionado é uma das questões mais delicadas da Língua Portuguesa. É certo que não existem regras precisas para esse assunto, mas podem-se discutir orientações de uso segundo o modo como escrevem os bons escritores. Os recursos do estilo e a ênfase, muitas vezes, corrompem, com razão, essas orientações, o que torna ainda mais sensível a instabilidade de fatos linguísticos relacionados ao emprego do infinitivo.

 

1.º) Casos em que não se flexiona o infinitivo:

a) Quando constitui locução verbal, situação em que obviamente aparece como verbo principal. Exs.:

Os homens não costumam perdoar por virtude, senão por fraqueza.

Os tabaréus parecem desconhecer o manejo de arma de guerra.

 

Observações:

1.ª) É importante atentar nas duas possíveis construções com o verbo parecer. Pode haver locução verbal em que parecer é o auxiliar, ou período composto em que parecer, ora flexionado, é verbo intransitivo, núcleo do predicado da oração subjetiva. Note-se:

 Os tabaréus parece desconhecerem o manejo de arma de guerra.

Análise sintática:

Período composto por subordinação.

Sujeito (oração subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo): Os tabaréus desconhecerem o manejo de arma de guerra

Predicado (verbal): parece

É possível o desenvolvimento, que esclarece ainda mais o fato linguístico:

 Parece que os tabaréus desconhecem o manejo de arma de guerra.

2.ª) Quando o verbo auxiliar se encontra distante do principal, geralmente por ter-se metido outro termo entre os verbos da conjugação perifrástica (hipérbato), pode haver flexão do infinitivo para que o sujeito fique claro. Note-se:

"Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés" (Gonçalves Dias, apud Evanildo Bechara. Moderna Gramática Portuguesa. 38.ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, pág. 284.)

"... dentro dos mesmos limites atuais podem as cristandades nascerem ou anularem-se, crescerem ou diminuírem em certos pontos desses vastos territórios" (Alexandre Herculano, apud Evanildo Bechara, op. cit., pág. 284.)

 

b) Quando é núcleo de complemento nominal de adjetivo e tem sentido passivo. Exs.:

A jovem cozinheira escolheu mal os pratos que prepararia; eram todos difíceis de fazer.

Aqueles problemas eram possíveis de resolver.

c) Quando não se refere a nenhum sujeito, ou seja, quando é impessoal. Ex.:

Ler é comum, raro é refletir.

d) Quando equivale a imperativo. Ex.:

"Marchar! marchar!" bradou o coronel com sua voz gutural.

e) Quando faz parte das orações infinitivo-latinas, assim chamadas pela Gramática tradicional. Consoante a tradição, elas são parte de período composto por subordinação: são as substantivas objetivas que têm por sujeito pronome oblíquo átono, fato linguístico único em português. Na oração principal, o núcleo do predicado verbal é verbo causativo explícito (mandar, fazer ou deixar) ou sensitivo (ver, ouvir, sentir etc.).

 

Observação: É incomum que o verbo acompanhado de oblíquo átono tenha por complemento uma oração, e não o próprio pronome. A sintaxe moderna não aceita essa análise, o que ainda não foi seguido pela gramática escolar. A análise que julgo mais acertada é a ensinada por Evanildo Bechara em sua Moderna Gramática Portuguesa. Segundo o gramático, o que se entende por oração infinitivo-latina é, em verdade, oração subordinada substantiva predicativa (oração transposta a substantivo, como prefere o autor), e o complemento do verbo da oração principal é, de fato, o pronome oblíquo. Tal interpretação é bem mais coerente e de há muito ventilada, principalmente por ocorrer o mesmo quando o predicativo do objeto não é oracional. Notem-se estes exemplos:

• Os alunos viram a professora muito tristonha.

Sujeito: os alunos
Predicado verbo-nominal: viram a professora muito tristonha
Objeto direto: a professora
Predicativo do objeto: muito tristonha

• Os alunos viram a professora chegar chorosa à sala de aula.

Sujeito: os alunos
Predicado verbo-nominal: viram a professora chegar chorosa à sala de aula
Objeto direto: a professora
Predicativo do objeto (oracional): chegar chorosa à sala de aula

• Os alunos viram-na chegar à sala de aula.

Sujeito: os alunos
Predicado verbo-nominal: viram-na chegar à sala de aula
Objeto direto: na (oblíquo assimilado)
Predicativo do objeto (oracional): chegar chorosa à sala de aula

• Os alunos viram-na chegando à sala de aula.

Sujeito: os alunos
Predicado verbo-nominal: viram-na chegar à sala de aula
Objeto direto: na (oblíquo assimilado)
Predicativo do objeto (oracional): chegando à sala de aula

As denominações supra não são as seguidas na referida obra. A analogia entre essas construções faz-me aceitar bem a não-existência das infinitivo-latinas; o fato, estranho à Gramática, de um pronome oblíquo funcionar como sujeito já me trazia certa desconfiança disso. Note-se que tanto o infinitivo quanto o gerúndio podem ser núcleo verbal da oração predicativa.

 

f) Quando há período composto por subordinação em que a subordinada reduzida tem o mesmo sujeito da principal. Ex.:

Sabemos estar (e não estarmos) cansados, mas continuamos trabalhando.

Observação: Para realçar o agente, pode-se, mais raro, flexionar o infinitivo, tal como se pode efetuar a flexão quando a subordinada se encontra distante da principal.

 

2.º) Casos em que se flexiona o infinitivo:

a) Quando há sujeito explícito. Ex.:

"... um dos vizinhos disse-lhe serem as autoridades do Cachoeiro." (Graça Aranha. Obra Completa, Rio de Janeiro, MEC — Instituto Nacional do Livro, 1969)

b) Quando se quer revelar o sujeito elítico através de desinência verbal. Ex.:

Caros confrades, peço ajudardes-me a administrar esta cidade que tanto estimo.

c) Quando indica indeterminação do sujeito, o que exige do infinitivo a flexão na 3.ª pessoa do plural. Ex.:

Joaquim, soube roubarem-te, dia a dia, as jóias da casa, aquelas tua doces meninas.

d) Quando, por força do estilo, se quer dar ênfase à frase, mesmo que se corrompam algumas regras já ensinadas. Exs.:

"Quem te deu, pois, o direito de correres à morte certa?" (Alexandre Herculano, apud Celso F. Cunha. Gramática da Língua Portuguesa. 11.ª ed. Rio de Janeiro: FAE, 1986, pág. 460.)

"Aqueles homens gotejantes de suor, bêbedos de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem [grifo nosso] a pedra, pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra o impássivel gigante." (Aluísio Azevedo, apud Celso F. Cunha, op. cit., pág. 460).

Observação final: Note-se o que diz Said Ali: "a escolha da forma infinitiva depende de cogitarmos somente da ação ou do intuito ou necessidade de pormos em evidência o agente do verbo" (M. Said Ali. Gramática Secundária da Língua Portuguesa. 4.ª ed. São Paulo: Melhoramentos, pág. 246). O infinitivo flexionado pede-nos maior atenção ao agente do processo verbal, enquanto o não-flexionado faz-nos atentar mais na ação verbal propriamente dita. É necessária a flexão do infinitivo sempre que o emprego da forma não marcada tornar a frase obscura ou ambígua, mesmo que isso exija a corrupção de algumas regras. Notem-se estes empregos estilísticos da forma flexionada:

"As crianças são acalentadas por dormirem, e os homens enganados para sossegarem". (Marquês de Maricá)

"É permitido aos versistas poetarem em prosa" (Camilo Castelo Branco, apud Evanildo Bechara. Moderna Gramática Portuguesa. 38.ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, pág. 286.)

Bom, ***. Essa é a minha tentativa de tornar sintético esse tema tão intrincado da Gramática. O assunto, como já dissera, é um dos mais delicados da Língua Portuguesa, e, portanto, tentei não deixar um tanto vagas algumas recomendações de emprego. Isso é tudo. Um abraço, e até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.