sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Crônica: O Pneu

O Pneu

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Que se façam as orações do dia! Mais um reflexo da natureza humana estoura na carreira de um menino atrás de um pneu, que desce, como se fugisse, temeroso, às suas pretensões inocentes, ao sorriso largo de criança, a todo aquele poder de não se ter vergonha. A alma nua da figura pueril é imperceptível a todos os que veem ridícula a perseguição àquele pedaço de borracha circular. A alma nua de criança ofende; a alma nua de criança existe, graças a Deus. Os ternos, os bigodes, as pastas, os óculos e os quejandos ambulantes fazem-se ofendidos, mesmo que intimamente, com toda a liberdade gozada pela criança sem camisa, que ora perde para o ligeiro pneu na carreira. Que atração haveria em correr atrás de algo que certamente se pegará? Aquele pneu tem de parar em algum local e em algum momento, e o menino, tendo em mãos a borracha, verá ter sido tão vã a perseguição. Perdera muito tempo, perdera saúde e perdera a alegria de ter podido jogar bola com os amigos, ou soltar pipa, ou qualquer outra coisa comum ao espírito de criança, porque quis, em vez de tudo isso, correr deliberadamente atrás de um pneu. Pensam assim aqueles objetos ambulantes a que me referi; são as mentes azedadas pelo mau viver em sociedade ou pelo achar que existe um padrão de retidão comportamental imaculado, que, em verdade, não é mais sério que uma coalhada. Elas tentam rememorar o que é ser criança. Elas enxergam o ser criança como a atitude sistemática de obedecer a uma série de tarefas diárias, que inclui todo o conjunto de pesos não suportados pelas pobres cabeças adultas e transmitidos acintosamente às nossas criancinhas. Isso tudo à custa de terem-no feito os pais dos pais; pensam, portanto, as mentes cansadas que, assim procedendo, colaboram decerto com o perpetuar da ideia de que a infância correta gera o homem correto e de que a adolescência correta gera o homem correto, mas não dão de cara com o parecer tolo que gratuitamente fornecem, todos os dias, sobre as noções de civilidade, postura, educação etc. Enquanto as cabeças não movem os olhos (ou seria o contrário?), o pneu, infrene, continua seu itinerário não traçado; o menino larga o dedão num bico de pedra e perde parte da unha, o que, naquela hipnose de correr e correr, não significa mais que uma cara feia e umas interjeiçõezinhas sujas, aprendidas com os amigos mais velhos; isso tudo se dá sem que ele pare de correr. A indiferença do menino ao comportamento adulto é gigantesca, ao passo que os anônimos, os clones ambulantes, dedicam parte da finalista atenção à inutilidade com que se sobeja a figura descamisada e felizmente despreocupada. Isso é tão sensível que a indiferença meninil espanta os sustos tomados por alguns que, ao atravessarem a rua, se veem surpreendidos por um pneu. À criança só interessa estar correndo, posto que, no sentir, somente o atrai o processo; o menino é livre da adultidade doente de querer fazer tudo, absolutamente tudo, com os olhos voltados para qualquer coisa diferente do que está sendo feito. O adulto pensa em por que fazer; a criança, no entanto, quer continuar, sentir e conhecer o que se entrou a fazer. A incoação, para o adulto, é a questão, a dúvida, o problema, mas, para a criança, é o desate, a solução, a experiência. O itinerário infindo do pneu parece lógico apenas à cabeça da criança.
    O pneu vai-se distanciando e conquistando territórios mais planos, como se devassasse a fragilidade cinza dos homens, que, cobertos pelas camadas inquebrantáveis da retidão que apregoam, são, ao último e preciso soco, como a mais frágil peça de porcelana da vovó, cuidadosamente guardada e mantida sob estúpida quietude, com o fito de não se poder usar. O homem é o cordeiro perseguido por medos e dúvidas, é o sítio em que reina incólume a hostilidade compartilhada exaustivamente pelos que creem ser a sociedade o reflexo do que vivem interiormente. Se a sociedade for, de fato, a indução do comportamento humano intensamente preocupado com o que se pode obter de tudo e de todos, o que se dá entre os homens é a solidária atitude de compartilhar egoísmos. O menino certamente passará à classe perdida das atitudes programadas, dos gestos disfarçados, dos sorrisos caústicos, das bocas cuspidas e dos olhos vendados e vendidos. Enquanto isso não se dá, o que se tem de fazer é percorrer vigorosamente o pneu, talvez a única coisa que faz completo sentido numa paisagem absolutamente torpe, em que progredir é antes fazer tudo se perder e orgulhar-se disso.
    O círculo teima em querer conhecer o chão, e o menino aquiesce à teimosia. A cicloide já não é tão perfeita quanto antes. O vigor com que, rápido, o menino se aproximava do pneu parece resumir-se à medida do passo que se dá entre a corrida e a caminhada. A borracha inclina-se e tende a revelar ao chão a lateral do objeto que constitui. A agitação momentaneamente cessa. O menino vê tudo aquilo com o sorriso estampado no rosto. Agora, estando parado e ofegante, sente a dor do dedão desunhado. Depois de alguma meditação, toma o pneu e resolve fazer tudo novamente, com a mesma alegria e entusiamo.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.