quinta-feira, 30 de julho de 2009

História da Matemática: Tartaglia e as Equações Algébricas.

    Como já havia dito, tenho preparado texto em que trato, despretensiosamente, de equações algébricas e de polinômios. Enquanto preparava, separadamente, uma parte do texto, relativa à demonstração da fórmula de Cardano, que se aplica a um tipo de cúbica, pensava, sem intento deliberado, em escrever uma história que, desde o momento em que a ouvi, me chamou a atenção por tratar do destino de um jovem italiano que, com muito esforço, conseguiu transpor as barreiras que o separavam das luzes da ciência. O texto é adrede curto, pois, querendo não volumar ainda mais o tímido texto matemático que preparo, enxuguei, como sempre faço, os excessos e as ideias secundárias.

Um Pouco de História: Tartaglia e as Equações Algébricas.

      As equações algébricas talvez sejam o tema mais importante e empolgante da Matemática no século XVI. Em tal período, muitos matemáticos, principalmente os italianos (por motivo claro: a Itália então vivia o esplendor do Renascimento), com muito fervor, lançavam-se ao estudo das equações algébricas, buscando os melhores métodos de resolução. Montavam-se verdadeiros arsenais de equações usados pelos estudiosos para competir publicamente entre si. São muitas as histórias sobre essas competições; algumas, incertas, com mais de uma versão, e outras, bastante precisas; todas, no entanto, trazem consigo a empolgação vivida na época e personagens muito curiosos. Um desses personagens é o autodidata Nicolo de Brescia (Tartaglia*), que teve infância bastante difícil pela intensa pobreza em que vivia com seus pais. Nasceu no ano de 1499, na cidade que lhe deu o sobrenome, e, desde cedo, mostrava-se uma criança muito curiosa, com a vontade de aprender que distingue esse tipo pueril. Em 1512, Brescia foi invadida violentamente pelos franceses, comandados por Gaston de Foix, e Tartaglia e seu pai, em fuga do terror que se estabelecera na cidade, como muitos dos moradores, tentaram resistir ao massacre que se dava nas ruas permanecendo dentro da catedral local, o que não lhes garantiu a segurança, pois, não respeitando o local sagrado, soldados franceses adentraram-no, destruindo o que se via pela frente e matando todos os que lá estavam, exceto o jovem Tartaglia. Seu pai foi morto e Nicolo teve o crânio fraturado e uma perfuração nada discreta do palato, a qual lhe causou forte gagueira. Desse problema fônico, vem o seu apelido Tartaglia, que, em italiano, significa tartamudo, gago. A salvação do jovem foi terem-no os soldados tido por morto devido ao severo dano capital que apresentava, enquanto os demais tinham-lhes as vidas ceifadas como se houvesse ali um monstruoso abate. A mãe de Tartaglia, que também conseguiu sobreviver, encontrou o filho na mesma situação de inconsciência em que ficara na catedral, tratando, de imediato, de retirá-lo seguro do local. Como vivia a família em extrema pobreza, a mãe não tinha suporte algum para garantir ao filho assistência médica, mas, segundo o que se conta, lembrou-se de um método duvidoso para tratar de chagas: lambê-las como fazem os cães. Contava Tartaglia, depois de salvo, que o método usado por sua mãe foi o que lhe garantiu a recuperação. O incidente, a nosso ver, foi uma prova da deliberação do destino, segundo a qual Tartaglia teria de viver para contribuir, de alguma maneira, com o desenvolvimento da ciência a que sempre revelou inclinação: a Matemática. Por verem-se-lhe as ferramentas de estudo extremamente escassas, Tartaglia, ainda criança, mas já depois do inditoso episódio por que passou e a que sobreviveu, roubou um caderno e passou a aprender a ler e escrever sozinho. Antes disso, tinha o hábito de riscar as lápides do cemitério como se fossem quadros-negros, por não ter ele recursos para a compra de papel. O mais impressionante é ter esse italiano, sozinho, aprendido, mesmo que intuitivamente, álgebra e aritmética com uma precisão assustadora (!). Posteriormente, entrou em sua vida o famoso professor da Universidade de Bolonha Scipione Del Ferro, que, impressionado com o gênio do tartamudo, informou a seu discípulo Antonio Maria Fiore a existência do jovem Nicolo. Não demorou muito para Tartaglia superar alguns matemáticos da época e revelar-se um excelente algebrista do séc. XVI. Passou a participar das disputas acaloradas que se davam sobre equações algébricas quando, por conta da descoberta da resolução da cúbica de forma x³ + px – q =0, que se credita a Del Ferro, foi desafiado por Fiore para uma competição em que cada um deveria propor trinta questões ao outro, todas envolvendo cúbicas, que deveriam ser resolvidas dentro de prazo de 40 a 50 dias. Não foi boa iniciativa de Fiore desafiá-lo, pois não sabia ele que Tartaglia descobrira, independentemente, os métodos de resolução de dois tipos de cúbicas, o que envolve equações da forma x³ + px = q, já conhecida por Fiore, e o que trata da resolução das cúbicas do tipo x³ + px² = q, até então desconhecido pelos matemáticos italianos. Bom, o resultado da disputa foi a humilhante vitória de Tartaglia por 30 a 0 (zero); todas as cúbicas propostas por Fiore, claro, eram do conhecimento do tartamudo, enquanto as propostas por Tartaglia eram todas da forma cuja resolução não era conhecida por seu adversário. O matemático derrotado tinha certo prestígio entre os cientistas de então, e a derrota que sofrera na disputa com Tartaglia foi, portanto, o que projetou este como um dos mais promissores matemáticos de sua época. É importante lembrar que as competições em que se envolviam os matemáticos serviam como termômetro, no meio científico, do que então se descobria e da competência e astúcia dos que se destacavam. É também importante lembrar que Tartaglia foi o primeiro matemático que usou a Rainha das Ciências nas técnicas de tiro de artilharia. Dedicou-se também à publicação de edições de Arquimedes e Euclides. A história que nos remete à descoberta da resolução da cúbica de Del Ferro e de Tartaglia revela uma personagem curiosa: Girolamo Cardano, mente inescrupulosa que ensinava matemática e praticava Medicina em Milão. Como se sabe, baseando-se em fontes árabes, Scipione Del Ferro havia descoberto o modo de resolver a cúbica em que falta o termo quadrático e, então, revelado o segredo a seu discípulo Antonio Maria Fiore. Como se percebeu, após a vitória de Tartaglia na disputa com Fiore, houve intensa atração dos matemáticos italianos pela nova mente que, segundo o que é registrado em obras sérias de História da Matemática, resolveu todos os problemas de Fiore em apenas duas horas (!). Um dos matemáticos que mais se impressionaram com o raciocínio de Tartaglia foi Zuanne de Tonini da Coi, que passou a corresponder-se, frequentemente, com o tartamudo. Uma das cartas de Zuanne a Tartaglia pode ser lida por meio do link que se encontra no fim desta postagem. Outro que tratou de aproximar-se de Tartaglia foi Cardano, que, depois de solene juramento de segredo, conseguiu arrancar do gago a chave por meio da qual se resolve a cúbica desprovida de termo quadrático. Em 1545, em Nurembergue, foi lançado o livro Ars Magna (Arte Maior), grande tratado de Álgebra escrito por Cardano, e nele estava contida a famigerada chave de resolução confiada ao médico. Apesar de todos os protestos de Tartaglia, Ludovico Ferrari, um dos mais brilhantes discípulos de Cardano, argumentava ter seu mestre adquirido o segredo diretamente de Del Ferro, através de uma terceira personagem, e acusava Tartaglia de ter cometido plágio da mesma fonte. Como então não tinha meios de provar que confiara a Cardano o segredo da cúbica, a situação permaneceu como estava.

Abaixo está o link que leva aos textos das cartas em que se correspondem Tartaglia, Zuanne, Zuan Antonio (livreiro que viajava frequentemente entre Veneza e Milão), Cardano e Ferrari; todas se referem ao conflito entre Cardano e Tartaglia acerca da chave de resolução da cúbica desprovida de termo quadrático.

Tartaglia versus Cardan

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*Lê-se [ta'talya].

2 comentários:

  1. Muito bom o seu trabalho neste blog. Fico feliz em ver que um conterrâneo do Cratim de Acúcar está desenvolvendo trabalhos tão bem elaborados e úteis a estudantes de todo o Brasil. Abraços,
    Cícero Neto.

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  2. Agradecemos o elogio do leitor Cícero Neto, nosso conterrâneo. Muito bom, saber que nossos amigos de Crato leem o que escrevemos.

    Abraço.

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.