domingo, 30 de setembro de 2007

Crônica: Saudades…

Lembro-me muito pouco da saudade que senti por muitas coisas que tive, pois prefiro tê-la por ocasiões, pessoas e lugares. Força que, muitas vezes, é carregada no inconsciente, a saudade sofre a constante platitude dos termos vulgarizados. A mais latente e que menos demonstro é a da infância, um tempo bom. São muitas as minhas histórias, mas a que mais me impressiona é a da primeira consciência da morte. Tinha quatro ou cinco anos e morava ainda no Brejo Grande (distrito de Santana do Cariri), quando parei para imaginá-la, sob obnóxia face corvina, como ave que surgia em meus sonhos. Vinha por detrás de morro que sustentava uma casa solitária em chamas, manchava a noite com velocidade e vermelhidão, e por fim desaparecia; acordava, então, assustado com aquele pesadelo que se repetira por várias noites de minha meninice. Era terrível ter de assistir a toda aquela cena novamente, uma inevitável chaga noturna. Não a notava personificada, nem mesmo a sabia definir precisamente, mas sentia todos os pecados do mundo em seu gesto rápido e áspero de abrir as asas e alçar vôo. Lembro-me, quase como uma pintura, da figura disforme, uma mancha rubra, pintada por seu contorno falho de ave infernal. Era freqüente acordar banhado de suor, com falta de ar terrível e com aquela imagem atordoante em mente. Por sinal, a dispnéia acompanhou-me por muito tempo de puerícia.

Quando vim morar no Crato, a recorrência da morte apareceu-me mais clara. Um pouco mais esperto, passei a refletir (quem diria que um menino tomaria instante para isso?) sobre a sua inevitabilidade; foi, com toda certeza, um momento de profunda tristeza: conhecer o destino de qualquer vivente, "abandonar" tudo e partir a algum canto desconhecido. Foi nessa ocasião que me meteram na cabeça alguma religião, e assimilei inicialmente a que era mais propagada em minha família e em muitas outras no Brasil: o Catolicismo. As muitas inquietudes infantis logo trataram de afastar-me de tais pensamentos, e acabei apreendendo a morte.

Tive muitas saudades, que são agora ultrapassadas e motivo de meu riso íntimo. Lembro-me de quando deixei a minha primeira escola, a Fundação Educacional Presbiteriana Prof. Natanael Cortez, para cursar, a partir da quinta série do fundamental, o resto do meu ensino no Colégio Objetivo. Nessa época, sentia uma saudade enorme daquela escola que era vestida em modelo religioso, como o nome aponta. O convívio com novas amizades e um novo modelo de ensino logo arrefeceu qualquer vestígio da saudade ordinária. A partir de então, ela tornou-se sentimento passadiço, curtas lembranças saudáveis do vivido. Concluí, há pouco, o ensino médio, e tratei de jugular a iminente lembrança de uma turma que estava prestes a tornar-se saudade. Por aprendizado anterior, essas e outras lembranças tornaram-se deveras, em minha memória, figuras vivas, coloridas, algumas pictóricas, mas que, acima de tudo, não são nada além de boas recordações.

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

Obs.: Texto de domingo quente e seco, esta cidade está assim nestes dias. Ainda tenho de preparar uma redação, uma crônica, para ser corrigida nesta quarta-feira, sobre saudade (tema sugestivo e de grande amplitude), sentimento coletivo, de natureza comum aos brasileiros, que, cônscios de seu poder, constroem suas histórias de vida e valem-se de suas saudades. Acabei escrevendo este texto, fruto de vontade intempestiva. Estava eu navegando pela Internet, quando entrei a escrevê-lo, quase que inconscientemente do início dessa ação.

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.