sábado, 1 de setembro de 2007

Crônica: Adotam-se animais racionais.

Às manhãs, acumulo jornais surrados sobre uma escrivaninha, que, já corroída por cupins, sustenta muitas das histórias que leio e outras que escrevo. Hoje, fui acordado por raios de sol, que, como punhais de fogo, cingiram-me o corpo lasso de longa noite de trabalho; pois esquecera a janela do apartamento bem aberta. Que loucura! Que perigo! Pensei assim, a priori, sobre o acontecido, mas logo me acalmei devido a certeza de não ser roubado facilmente, por não haver também o que ser roubado. Outra surpresa acotovelou-me a vista, que ainda buscava prumo da fadiga latente de noite mal dormida; era um tipo canino taciturno que me olhava fixamente, como sofresse espécie de hipnose. O ser parecia julgar-me os movimentos, e, paulatinamente, fui-me recordando da compra deste animal, em noite anterior.

Como de praxe matinal, tomei lugar na escrivaninha e entrei a ler o jornal que assino. Por estranha coincidência, havia uma matéria sobre campanha de adoção de cães e bichanos abandonados. Em momento próprio, e como fui induzido, tracei a vista naquele animal anônimo, que, ainda inerte, parecia ter sido entregue à vida para deter os misteres de seus semelhantes: ter de "aprender" normas, que muitos julgam serem obedecidas por mero instinto animal; prender-se ao convívio de um dono e, acima de tudo, mostrar-se inerme a muitos dos donos que os usam como saco de pancadas. Em instantes, mergulhava em reflexão sobre o título que detemos: somos os subjugadores, os animais racionais. Quando me atinei à matéria jornalística, já em final de leitura, idealizei uma situação fantástica que representaria bem a mudez daquele animalzinho enigmático: a posse inversa. Muitos animais da matéria lida, entre outros, assumiriam o poder de escolher um dono, uma legítima adoção de animal racional. Bem que, em sociedade hodierna, o emblema da racionalidade não caberia adequadamente a ninguém; em quase profusão de toda aberração humana, o homem que está vestido em terno escatológico não merece sequer a propriedade de seres taciturnos e frágeis como este que me olha. Vivam estes tipos caninos e felinos, que agora podem, ao menos em meus pensamentos, adotar um animal racional!

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.