quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Artigo: Teadoro, Teodora

Pasquale Cipro Neto

Em 1947, o grande Manuel Bandeira publicou o antológico poema Neologismo, uma de suas tantas obras-primas. Ei-lo:

 

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Permita-me perguntar-lhe, caro leitor, com todo o respeito do mundo: você entendeu o poema? Captou o âmago da mensagem? Entendeu, por exemplo, por que o verbo teadorar foi grafado numa palavra só? E entendeu por que o poeta diz que esse verbo é intransitivo?
Vamos conversar um pouco sobre isso? Vamos lá. Na escola, muitas vezes se diz que verbo transitivo é "aquele que precisa de complemento" e que verbo intransitivo é "aquele que não precisa de complemento". Em seguida, é comum que venham listas e listas de verbos e suas respectivas classificações: o verbo X é isto, o verbo Y é aquilo etc.

Não é bem assim que a coisa deveria funcionar. Seria bom ver os verbos na frase, no texto, no contexto. Em "Gostei do vinho", por exemplo, o verbo gostar é transitivo indireto e significa julgar bom, mas em "Gostei o vinho" o verbo é transitivo direto e significa provar, experimentar. A última construção não é comum na língua de hoje, mas aparece com alguma freqüência nos textos clássicos. Fora de contexto, nenhum verbo é coisa alguma.

A esta altura, talvez seja interessante começar pelo começo (com perdão pela redundância), ou seja, por explicar por que o verbo transitivo se chama transitivo e por que o intransitivo se chama intransitivo. Que tal lembrar que as palavras transitivo, transitar, trânsito, transitório, entre outras, são cognatas, isto é, têm raiz comum? Por trás de toda essa família está o verbo latino transire, cujo significado é ir além de.

Se João adora Maria, por exemplo, a adoração de João passa, ou seja, transita, sai dele, e tem Maria por alvo, ou seja, por objeto. Diz-se, então, que em "João adora Maria" o verbo adorar é transitivo e, conseqüentemente, Maria é o alvo, o objeto dessa adoração. Não é à toa que, nesse caso, Maria funciona sintaticamente como objeto (direto, nessa situação). Em outras palavras, Maria é o complemento, o fim do percurso da adoração (que sai de João e transita até Maria).

Em "João dorme muito", o ato de João (dormir) não transita, não sai dele, não tem ninguém ou nada por objeto, por alvo. Diz-se, então, que em "João dorme muito" o verbo dormir é intransitivo.

Ao criar a palavra teadorar, nosso grande poeta incluiu nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é intransitivo porque já contém seu suposto objeto (que é o te). Fantástico, não? Não é para ter orgulho de um poeta dessa grandiosidade?

Pois bem, por que no parágrafo anterior eu disse "uma das razões da intransitividade"? Porque outra razão talvez seja o fato de que, sendo intransitiva, a adoração não alcança o alvo, fica presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser adorado. Não custa lembrar que, no começo do poema ("Beijo pouco, falo menos ainda"), o próprio poeta dá uma pista claríssima dessa intransitividade de seus sentimentos.

Até domingo. Um forte abraço.

(fonte: Jornal O Globo, da coluna semanal do Prof. Pasquale Cipro Neto, em 6 de março de 2005)

2 comentários:

  1. Muito boa explicação sobre o verbo intransitivo no poema de Manuel Bandeira...parabéns!

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  2. Maravilha de interpretação!
    São bons intérpretes que valorizam uma obra.
    E de maneira pouco explícita pode ser que Bandeira desse bandeira também ao sentimento que dela nunca iria transitar para outra pessoa...

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.