sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Gramática: Emprego de vírgula antes de “etc.”.

     Um dos foristas trouxe, recentemente, uma questão bastante ventilada e, no entanto, ainda pouco compreendida. Referia-se ele ao emprego de vírgula antes da abreviação etc. Este é ainda assunto polêmico, pois muitas gramáticas acuadas, em lições caquéticas, incutem proibição a torto e a direito. Muitos dos que escrevem em português ainda sentem insegurança ao empregar ou não vírgula nesse caso. A minha resposta tem por fim esclarecer essa questão, desmitificando lições seculares.

Olá, colegas de fórum. Apesar de et cetera (do lat. et coetera) significar e as demais coisas, ou seja, apesar de haver a conjunção e na formação, é lícito empregar-se vírgula antes da abreviação etc. Apegar-se a regras caquéticas, que em nada contribuem com a evolução da língua, evidencia o retrocesso de que tantos são vítimas. Uma delas, contida, por sinal, no famoso Dicionário de Questões Vernáculas, de Napoleão, proíbe vigorosamente o emprego de vírgula antes da abreviação etc. O autor argumenta que, por não se usar, em série de termos coordenados, o sinal de pontuação antes da conjunção aditiva e, também não se deve vírgular a abreviação porque se faz sentir a presença dessa conjunção em etc. Argumento, por sinal, muito furado, pois, fugindo do latim, essas três letrinhas tomam rumo bem diferente em português; não se faz lembrar, entres bons escritores, hodiernos ou não, todo o rigor exigido por Napoleão. Listo abaixo citações de grandes penas de nossa literatura, que, conscientemente, empregaram vírgula antes de etc.

Em Os Bruzundangas e em O Cemitério dos Vivos, Lima Barreto abona a pontuação:

"Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.; mas todo esse folk-lore não tem sido coligido e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso comunicar." (BARRETO, 1923, grifo meu)

"Dificuldades, em casa, credores, mau humor da mulher, rompantes do marido, descomposturas, casas de tavolagem, álcool, etc." (BARRETO, 1953)

Até mesmo João de Barros, em sua Grammatica da lingua portuguesa, serve-nos dos exemplos:

"E dâs que usamos que usamos pera serviço da pessoa e cása, andilhas, cálças, çiroulas, mantéis, alforges, grelhas, tenázas, tisouras, etc." (BARROS, 1540)

Em O Arquipélago, terceira parte de O Tempo e o Vento, escreveu Érico Veríssimo o trecho abaixo.

"Estás condicionado, meu filho. Vocês letrados glorificam a guerra, vivem com essa história de hinos, bandeiras, tambores, clarínadas, cargas de baioneta, etc." (VERÍSSIMO, 1961)

Em O Conde d'Abranhos, fornece-nos Eça de Queirós o emprego de vírgula antes de etc.

"Tinha sobre a mesa pequenas caixas feitas de cartas de jogar, com dísticos em letra gótica que lhes designavam a serventia: caixa das penas, caixa da borracha, caixa do limpa-penas, caixa das obreias, etc." (QUEIRÓS, 1926)

Mais dois lusitanos de peso abonam a pontuação: Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano.

"A denominação de estrangeiros dada aos soldados da rainha e do conde de Trava parece na verdade imprópria, sendo eles pela maior parte galegos, leoneses, etc." (HERCULANO, 1843)

"Os livros de Calisto Elói eram cronicões, histórias eclesiásticas, biografias de varões preclaros, corografias, legislação antiga, forais, memórias da Academia Real da História Portuguesa, catálogos de reis, numismática, genealogias, anais, poemas de cunho velho, etc." (CASTELO, 1866)

São muitas as abonações desse emprego de vírgula. Creio que são suficientes e bem fortes as citações que expus. Por tudo, é evidente que não se pode condenar o emprego de vírgula antes de etc. O que, de fato, se tem de esclarecer é que se faculta o emprego de pontuação, ou seja, fica a cargo de quem escreve usar ou não a vírgula antes da abreviação.

Isso é tudo, ***.

Abraço. Até outros tópicos.

2 comentários:

  1. Olá, Gustavo. Creio não se tratar de apego a regras caquéticas. Na verdade, creio que a língua portuguesa anda sendo maltratada demais e penso que não é má idéia (com acento; sou contra a reforma) retornarmos, sempre que possível, às origens de nosso idioma. Evoluções nem sempre são benéficas. Ouvi, outro dia, que parece que já sestão sendo consideradas corretas expressões do tipo "eu vi ela". Daqui há pouco, estaremos falando qualquer coisa, menos português.

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  2. Olá, Remenry. Sobre a questão dos usos, assunto que envolve o discurso do lusófono, será apropriado dizer "eu vi ela" quando a situação assim o exigir. É fato da língua, e nesse caso cumpre lembrar a diferença já muito ventilada entre língua e gramática. Não se pode confundir Jesus com Genésio... No momento familiar, na conversa descontraída entre amigos, é lícito falar "Olha ele ali", "Ninguém deixou ele falar", "Não assisti o filme", "Perdoo você porque sou teu pai" etc. São situações completamente legítimas. Em outra postagem, referente à expressão "mal e porcamente" [sic], fiz questão de relembrar a distinção entre língua e gramática. O linque para a postagem segue abaixo.

    Sobre gramática, língua e preconceito linguístico

    Quando a questão são os momentos do discurso, aquela referência que o gramático Pasquale Cipro Neto faz ao modo de vestir-se é perfeitamente aplicável à escolha do modo de usar a língua. Nenhum banhista em sã consciência vai à praia de fraque e cartola, tal como nenhum médico que preze sua imagem vai ao consultório trajando camiseta e bermuda. Com a língua ocorre algo parecido; ninguém conversa com os amigos ou com os familiares como se discursasse em encontro científico. Do mesmo modo, seria ridículo que, em momento solene, um indivíduo escorregasse na sintaxe, usasse gírias, cometesse barbarismos etc.

    Nesse campo de ideias, em minha opinião, a boa conduta é sempre manter o bom senso (in medio virtus): não ser eufórico a ponto de vestir a camisa do vale-tudo na gramática e não pertencer ao time da retranca que se nega fatos gramaticais que saltam aos olhos.

    Tenha-se cuidado com os extremistas e com os dinossauros da gramática, sempre tendo, entanto, os olhos bem abertos para o estágio [sic] em que se encontra a língua e aquela sua partícula, a norma-padrão. Para que passe a enxergar a gramática de modo diferente, sugiro que leia as obras de Celso Pedro Luft, grande estudioso do Português.

    Abraço!

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.