terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Crônica: O patético caso de engasgo.

O patético caso de engasgo

Gustavo Henrique S. A. Luna

a01     Há meses a campainha desta casa pifou. Era uma daquelas bem vagabundas que sequer se ligam à rede elétrica, funcionando à pilha mesmo. Desde então, atender a quem quer que nos venha visitar ficou um pouquinho complicado. Ninguém escuta quem bate. O vestíbulo da casa é extenso e, como fica todo o mundo socado em seus quartos, há sempre aquela apreensão, ao mínimo ruído metálico, de que estejam batendo no portão. Derrubam um caneco pela área do alpendre e já tem gente saindo do quarto e gritando que há alguém à porta. Um dia desses, em rara e felizmente efêmera ocasião, uma araponga resolveu figurar próximo ao rio, perto de casa. Esse episódio foi um inferno e, por infeliz coincidência, houve visitas, evidentemente não atendidas. Todo o mundo se conformara. 
    — “É a droga da ave!”.
    Hoje mesmo fui surpreendido pensando num blefe. Alguém realmente batia. Talvez por polidez, fazia com suavidade fora do comum, como se temesse danificar a estrutura metálica. Achei que fosse qualquer outra coisa, exceto alguém no portão. A apreensão me fez verificar. Era uma senhorinha com um cachorrinho nos braços. Um cãozinho castanho, de pelagem rala, da raça Pinscher. Ela, com os olhos molhados, me perguntava se o meu avô estava. Referia-se a meu pai. Antes que fosse chamá-lo, ela passou a explicar que havia um cão engasgado com um osso, mas não me disse assim, na lata. Foi uma novela para esclarecer a situação. A fala atrapalhada dava a entender que o cão em apuros não fosse o que ela trazia consigo. Enrolava, se confundia, tentava retomar o raciocínio, mas voltava a se atrapalhar. “O meu sobrinho saiu… Ele ‘tá engasgado… Eu ‘tou sozinha, e ele ‘tá demorando demais. O pobrezinho vai morrer. É porque tem um cachorrinho…”. Desse modo começou a contar a história. De imediato, antes de ela enredar o caso do animal, interrompi e perguntei onde estava o sobrinho, pensando que fosse ele quem corria risco de vida. A referência distante ao cachorro me acerou um tantinho de impaciência.
    — “E onde está o cão, minha senhora?”.
    — “É este aqui.”
    E o animal imóvel, com os olhos arregalados, quase sem evidenciar respiração. Havia me dito que não conseguia retirar o osso sozinha. A moribundez no olhar do bicho me chamava a atenção. Pedi que ela segurasse as patas e o tronco, enquanto me arriscava a retirar osso. Deu certo. E, no mesmo instante, a resposta de vida meio insólita: o animal se agitou, escapuliu dos braços da velha, saiu correndo, latindo, como se nada lhe houvesse acontecido.
    — “E a senhora é muito apegada a ele?”.
    — “Não muito. Meu irmão comprou hoje e deu de presente a Juninho.”.
    Fui então saber se ela não queria entrar e tomar uma água para tentar se acalmar um pouco. Os olhos molhados e meio avermelhados, de quem já chorou tudo que tinha de chorar.
    — “E por que a senhora está chorando?”.
    Franziu a testa. Demorou a responder, repetindo o copo d’água. Bebia com sofreguidão. Mas a feição era de placidez.
    — “Não ‘tou chorando, meu filho. É conjuntivite.”.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Crônica: A dor de cabeça dos pais.

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A dor de cabeça dos pais

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Pra ser sincero, digo, sem vergonha alguma, que não sou dado a escrever sobre memórias. Confesso: não tenho jeito pra isso. Muito menos quando as memórias são alheias. Hoje papai já não costuma me contar as suas histórias, como fazia quando eu era bem menino. Talvez seja a minha idade a razão do desinteresse dele pelo relato de suas aventuras de infância no Brejo Grande. É possível que ele pense que elas já não me interessem com a mesma força de antigamente, quando nós nos sentávamos na calçada de nossa antiga casa, na São Francisco, debaixo duma acácia, na boca da noite, e ele traçava suas peripécias de cabrinha do buchão. Naquele tempo, no tempo da acácia, notícia séria ou interessante, pra mim, não vinha do telejornal, vinha da resposta de papai à minha pergunta diária: “E aí, pai? Quais são as novidades?”. Mesmo que não houvesse novidade alguma, ele sempre dava um jeito, arrumava algo novo pra me contar. Era como meu velho fechava o meu dia com chave de ouro, com um momento terno de cumplicidade. Agora eu me sinto um traidor, partilhando com vocês aquilo que me segredava de modo tão entusiasmado.
    Ele tem muitas histórias, e algumas tantas são bem engraçadas. Aliás, ele todo, até hoje, tem umas atitudes que saem do tom e fazem os próximos rirem quando lhas conto. Outro dia, janelando de madrugada, quase no primeiro canto do galo, vi o velho pedalando, numa calói vermelha, barra circular, com toda a intensidade meninil (de pau, como diz bonitamente a mocidade), pra cima e pra baixo, dando voltas na quadra e chamando a atenção dos cães da vizinhança. Foi o dia em que deu uma de baderneiro feliz, acordando os nossos ex-vizinhos da Padre Ibiapina. “Pai, Dô quer ir pra casa. Devolve logo essa bicicleta e vem dormir!”, disse, invertendo os papéis. Ao que o ciclista da melhor idade respondeu: “Quer nada. Ele ainda ‘tá é no bar de Toinho, jogando sinuca e embicando umas lapadas.”. Parecia menino, arrumando desculpa pra dar mais uma volta no quarteirão.
    Outra vez bateu boca com os membros da Jovem Crato por conta da zoada que fazia a torcida (des)organizada, num barzinho enconstado na casa da Pe. Ibiapina. Era o aquecimento deles, antes do jogo. Cantavam o hino, soltavam fogos e reproduziam música no volume máximo, imagino, que podem suportar os amplificadores de som que se engastam nos carros. Do copiá, gritou a pior ofensa que poderia ser proferida a um grupo de torcedores fanáticos: “Tomara que o Crato perca!”. Daí levou em troca uma saraivada de vaias, quase em uníssono, não fosse um sujeito mais escroto ter gritado de volta: “Cala a boca, Dedé!”. Pronto, foi o suficiente para que ele ligasse pro Ronda, que chegou, com muito atraso, e encontrou o canto mais limpo. Como se diz no jargão policial, todos já se haviam evadido do local do crime. Não havia evidências de nada, e o assunto se encerrou ali. Ficou por isso mesmo.
    Mas e as peripécias da infância? Me desviei porque o homem tem é história. Da adultidade tem coisas tão gravemente engraçadas quanto as da meninice. Meu pai é o mais novo dos homens, de uma prole enorme. Quem o conhece hoje certamente vai duvidar, mas eu ratifico: ele é mais novo do que tio Zequinha, aquele que mantinha a farmácia Santa Inez, ali na Bárbara de Alencar. Se o meu tio ler esta crônica, ele vai praguejar dizendo o contrário. Pois eu já brinco afirmando que a fuselagem de papai é que está um pouco avariada, certamente pelos excessos da vida. Deixando de lado os detalhes etários e voltando à infância do velho, todos me dizem que, justo por ser o caçula, sempre foi muito mimado. É provável que seu gênio de traquinas tenha como causa esses mimos todos. Conta-se que, em dada ocasião, não se sabe bem o motivo, ele tenha mijado dentro das cabaças com que os trabalhadores de meu avô bebiam água durante o almoço. Imagine a presepada e a pisa que não deve ter levado de vovô Mundico.
   Outra história diz respeito a um xodó de Roque, um ave linda com que fora presenteado pouco tempo antes de meu pai ter posto seu olhar de guerra pra cima do bicho. Era um pavão robusto, volumoso, que Roque fazia questão de mostrar a qualquer vivente que pisasse em sua casa. Puxava o cabra pro terreiro e dizia: “Olha ali, homem, que coisa mais linda!”. Diz-se até que a devoção era tanta, que ele chegava a conversar com o animal. Desmotivadamente agiu de novo o endiabrado. Afinal, menino ruim não precisa de motivo pra fazer diabrura. Numa andaça, à tardinha, escutou o grito da ave no terreiro do homem e, talvez já cansado de matar lagartixa, resolveu uma investida mais ousada: puxou o bodoque e mirou, já bem perto do cercado. Acertou a pedra no quengo do bicho, que saracoteou desesperado, com seus gritos de socorro. O que tinha de volume e de robustez, tinha de vigor. Não morreu. Cegou.
    E mais: inventou de ingressar no cargo de empresário mirim de luta livre, financiando brigas as mais violentas entre os amigos de infância. Como o que não faltava na casa grande de vovô Mundico era rapadura, por conta do canavial e do engenho, fazia desse quitute o prêmio para o vencedor de cada briga. O que não faltava atrás de meu pai era menino querendo trocar uns tabefes por uma banda de rapadura. E assim ele ia organizando os embates: hoje fulano luta com sicrano, e o outro ali com beltrano… Veja bem, camarada: meu pai, ainda menino, já era visionário! Foi o primeiro a investir pesado na prática de luta livre, já no meio infantil. Muito antes de Dana White pensar em existir, nos idos de 50, já estava lá meu velho fazendo uns cabrinhas caírem no cacete por uma banda de rapadura. Fez isso por um tempinho, até vovô Mundico descobrir a marmota e quase lhe torar o espinhaço de tanta lapada com cipó de embira.

Crônica: Se correr, é pior!

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Se correr, é pior!

Gustavo Henrique S. A. Luna

    No caso, era uma chinelada nas canelas, uma "havaianada" no meio do espinhaço, uma "cinturãozada" com o "plus" de uma fivela da grossura de um dedo mindinho.
    Uma história rapidinha: quando "menino-véi-do-buchão", tinha atirado uma tigela de gelatina de morango em Niele, lambuzando a camisola que minha irmã usava. Ora, ela, muito mais velha que eu, partiu na carreira; eu, entanto, saí batendo os calcanhares na bunda. Enfim, ela não me alcançou. E também saiu dizendo que, se eu corresse, seria pior. Como estava em vantagem na carreira, não tive dúvida alguma, continuei ligeiro em direção ao oitão dianteiro da casa. Lembro, no entanto, que a corrida não havia sido de todo fácil. Havia uma série de obstáculos. Como me havia programado mal, tomei o trajeto errado, o corredor entre o linde interno da casa e o oitão da lateral esquerda, que servia de canil para o velho capitão Bubu (que Deus o tenha bem no Céu dos Cachorros!) e onde também havia fincado morada um outro ser, bem menos barulhento do que o nosso cão patrulheiro, um mamoeiro macho que, não sei como, resistia incólume às unhadas diárias do cão. Nessa curta distância, pouco menos de dez metros, havia duas muretas de concreto, as duas entradas para o canil. Havia portinholas, mas, com a pressa com que vinha, elas não me ajudaram muito. Saltei (Deus sabe como o fiz), sem perder o pique, a primeira mureta, dei com os peitos no tronco do mamoeiro e, já na segunda mureta, ralei a perna na parte de cima da portinhola de metal. A corrida com obstáculos não acabaria na travessia da morada do velho Bubu. Quando tomei a direita, já com o intuito de saltar o oitão da frente e me ver livre de uma "cinturãozada" de Niele, que então espumava de chateação, acabei passando pelo copiá, onde havia um viveiro, quatro cadeiras e uma mesa de centro. Relembrando isso, ainda digo que as mães planejam o ambiente com o intuito de que os filhos se machuquem. Bom, lembro que dei com o mindinho na quina da mesa de centro. O medo da "cinturãozada" foi maior do que qualquer esboço de careta ou do que a expressão de palavrinhas sujas inspiradas pela dor, que tardou, mas veio. Saindo do copiá, veio a redenção: com dois ou três pulos, da parte mais alta do corrimão esquerdo da escadaria, me enganchei num galho velho da quixabeira (ah! a quixabeira! tempo bom de meninice) e daí me pendurei em cima do muro. Pronto! Minha homérica aventura de infante estava concluída. Os detalhes finais talvez incluam alguma zombaria que prestei, ainda em cima do muro, orgulhoso de minha façanha, à irmã, que bufava de raiva. Tinha a certeza de que a "falta-de-vergonha" [que bem compreenda o leitor, neste momento, o que quero dizer com essa "falta"], típica da meninice, não pertencia mais a minha irmã, no vestíbulo da adultidade, e que, por isso mesmo, teria sido impedida pela vergonha de se expor aos olhos dos vizinhos ao correr atrás de um menino, como se também fosse uma meninona. Ledo engano: era uma meninona, sim! Uma meninona que correu atrás de um menino, mas dentro de casa. Essa foi a grande diferença.
    Bom, a verdade é que saltei, atingindo o calçamento da Rua Pe. Ibiapina, em Crato. Uma liberdade que só pode ser experimentada por quem já extraiu o máximo da infância.
    Depois veio a dor no mindinho torto, excruciante...

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Crônica: Bicho-do-mato.

Bicho-do-mato

Gustavo Henrique S. A. Luna

p04     Sou um bicho-do-mato. Agora sei que sou. Depois de tanto teimar que não, percebo que o que mais faço é assumir a postura de um bicho-do-mato. Seja na saída desazada, em que a conversa não se faz fluida, em desarmonia com o assunto discutido pelos demais que me acompanham, seja no modo acabrunhado como cumprimento os outros, como economizo no jeito de expor afabilidade. Costumava me chamar assim um tio quando, ainda muito novo, com meus seis ou sete anos, em meio a uma roda de parentes, sempre muito barulhentos e numerosos, me expunha, por livre e espontânea pressão dos pais. “Ei, bicho-do-mato! Vem cá!”, e me puxava e me punha no colo, com a simpatia de homem falante, piadista e bom.
    Era todo o cuidado que tinha com o desconhecido, com o inesperado, com o exagero dos ânimos. Era uma gente que ria demais, que ria de tudo, e eu sempre muito sério, sem entender muito bem de onde vinha toda a graça. Um menino, de seis anos, e sério. Quinha era que dizia a Dedé: “Esse teu menino parece um velho. Vi ele nesse instante. Passou, sem camisa e descalço, com a testa franzida, rumo à bodega de Seu Chico. Parecia um hominho.”. Essa seriedade era só de fachada. Ia danar a comprar picolé de limão, fiado, na conta de meu pai. Era um estrago que lhe fazia durante quase todas as tardes de futebol trave-fechada, no calçamento da rua onde vivi parte de minha infância. A rua era a São Francisco, aqui em Crato mesmo. Nesta cidade, em Juazeiro e em Barbalha, além de hospital, tem muita rua com nome de santo: é São Pedro, São Paulo, Santo Antônio etc. E seguia correndo com os dedos grudentos, pés descalços, tomando posição nos embates acalorados desses fubebóis de bico de pedra. Mas era um bicho-do-mato seletivo: com os comparsas da infância compartilhada, ficava à vontade para um rachinha, para as conversas leveiras, regadas a piadas e histórias de sacanagem que os mais velhos contavam; para uma gente diferente, efusiva demais, era a personificação da desconfiança, era o não-saber-o-que-dizer.
    Numa dessas, estava com meu pai, fazendo não sei o quê, talvez lhe aproveitando a companhia para pedir alguma besteira pra comer, na bodega do finado Chico Henrique, homem bom e comerciante ainda melhor. O pai jogava baralho com os camaradas, e eu ficava por perto, de olho no carteado, acerando a minha intenção pidona, até que lhe saísse a frase incomodada: “Que é que tu quer, menino?!”. Foi justo nesse dia que tive de deixar de lado o incômodo do encabulamento, com o dever da palavra, para delatar um criminoso. Tarefa das mais árduas, já que o meliante era barra-pesada e estaria, naquela ocasião, furtando ao velho Chico, querido por todos daquelas bandas. Era um frangote, recém-ingresso na adolescência, escondido debaixo do balcão da bodega, descamisado e com o calção verde cintilante cheio de pratas e de cédulas. Primeiro, a intimidação quando vi aqueles dois olhos ameaçadores, se arreminando por minha afronta de tê-los arrostado; depois, o indicador em riste, no meio do rosto que se coadunava com o negrume debaixo do balcão, pedindo silêncio, aliás, exigindo, sob a ameaça de me fazer qualquer mal posterior. E a ameaça era real: ele me apontou e, em seguida, bateu o punho cerrado na mão espalmada, como quem diz: “Eu te pego, seu bostinha!”. Sabia bem quem eu era e onde costumava andar e brincar. Apesar da convicção que assumira, planejei bem como haveria de entregar o criminoso. Tinha de delatar o filho-de-uma-égua de um jeito ou de outro, mas não podia ser assim, de cara, até porque, em se sabendo notado, à primeira atitude de delação que esboçasse, ele teria sucesso em fugir pela saída mais próxima da bodega, sem ser reconhecido, ligeiro feito coice de bacorinho.
    Não tardaria e meu pai teria de deixar o carteado, os amigos e a bodega pra levar o pão do jantar. Esperei então que isso acontecesse. Fui saindo e, sumindo do campo de visão do moleque, entreguei a situação a meu pai, que, disfarçadamente, ou melhor, que, escrotamente, voltou à bodega, fincou pé em frente à portinhola do balcão e disse a Seu Chico: “Chico, e esse menino zambeta debaixo do balcão, quem é?”. Pronto, nisso foi desfeito o furto. Depois de uns tabefes, o menino saiu ainda aluado de tanta mãozada que levara. Ainda balbuciou, em meio aos tabefes que levava e à saraivada de nomes feios que dizia, o motivo do furto. Usaria o dinheiro para quitar uma dívida que tinha com o sorveteiro Raimundo, homem bom e de bom papo que passava quase todas as tardes na São Francisco e que era conhecido por, a bem dizer, todo o mundo do bairro. Era ele, o carrinho e a voz de sorveteiro aboiador, gritando como quem pede passagem: “Sorveteiro!”. Gritava bonitamente, como quem tangia gado.
    Mas isso tudo muda com as exigências futuras. Envelheci, mas não muito. O espírito ainda está nos trinques, como o do hominho. Quando se tem de comunicar de modo pelo menos razoável, a gente desata o nó da fala e diz o que tem de ser dito, como quem tem a difícil tarefa de apenas informar. A gente objetiva as ideias na fala, sem se deixar enganar pelo que mais poderia ser dito.
    Conversando, outra vez, com uma amiga, por telefone, ela me passou o neologismo cheio de graça e, ao mesmo tempo, temperado de sensatez: extrovertímido. Foi isso que passei a ser desde que a comunicação presta e incisiva passou a ser a regra. Hoje sou um bicho-do-mato extrovertímido.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Crônica: Dia do Forró e do Rei do Baião.

    Hoje se comemora o dia do forró, data devida ao aniversário de nascimento daquele que foi, certamente, o artista que, através da música, mais se envolveu com a popularização da cultura nordestina nas demais regiões do País, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Não tenho a pretensão de acrescentar nada sobre Gonzagão; todo conhecedor, mesmo que de-vista [sic], como diz um amigo, sabe o peso da figura desse homem, que, mais do que sanfoneiro, intérprete e compositor, soube, como ninguém, ser o grande repositório musical da cultura popular nordestina. Ao lado de tantos parceiros musicais, como Humberto Teixeira, Zé Marcolino, Zé Dantas e outros tantos, o Rei contribuiu com a sacralização da figura do vaqueiro e com o registro musical das tradições. 
01     Quando interpretou “Acauã”, de Zé Dantas, decantou o que há de mais puro e representativo da seca na fauna do semi-árido, através da descrição lamuriosa da ave agoureira. Essa canção, de tão recheada de beleza e de poesia, me inspirou a escrever as minhas primeiras décimas, aos moldes do gênero popular, que têm por título e mote “A Acauã de novo ilustra/ Triste seca no sertão”, que pode ser lida neste blogue através deste linque. Quando cantou as belezas de minha cidade natal, o Crato, ou a Vila Real do Crato, como alguns conterrâneos meus gostam de chamar, encheu o peito do povo dessa cidade de orgulho, cantando o seu apreço por esta terra de clima ameno, de população acolhedora, no sopé da Chapada do Araripe. Alguns poetas, como fez Manuel Bandeira, precisam imaginar e inventar uma cidade para lhes servir de refúgio, de paraíso; já outros dizem, como fez Gonzagão, “Eu vou pro Crato!”, sem precisar imaginar, nem inventar, porque esse paraíso existe, de fato, e fica bem no Coração do Cariri, como diz o próprio Rei. “Cratinho é de Açúcar, o Cratinho é doce!”, disse Gonzaga no trecho de conversa ao final da canção. 02 Quando registrou o corriqueiro e o pitoresco da crônica sertaneja, cheia, até a tampa, de um humor inigualável, como foi o caso da canção “Samarica Parteira” (de Zé Dantas), “Dezessete e setecentos” (de Miguel Lima), “Não vendo nem troco” (com Gozaguinha), “O forró de Mané Vito” (com Zé Dantas), “Derramaram o gai” (com Zé Dantas), “Siri jogando bola” (com Zé Dantas), “Lorota boa” (com Humberto Teixeira), “Galo Garnizé” (com Miguel Lima), “Lá vai pitomba!” (com Onildo Almeida), “Ovo de codorna” (de Severino Ramos), “Capim novo” (de José Clementino, recentemente falecido), “Buraco de tatu” (de Jadir Ambrósio e Jair Silva), “Faz força, Zé” (de Rosil Cavalcante), “O tocador quer beber” (com Carlos Diniz), “Casamento improvisado” (de Rui Morais e Silva) etc., Gonzaga resgatou nessas canções o trocadilho, o sarro, a gozação, através da figura do sujeito preguiçoso, que não quer trabalhar; da metáfora do buraco de tatu; do valentão que acaba o samba no forró de Mané Vito; do pitoresco e do surrealista na imagem do siri jogando bola; da altercação financeira sobre o troco que deveria ser de 16.700 réis; do registro duma carreira desaforada que tomou, em riba de uma bestinha, um dos trabalhadores do Capitão Balbino, atrás de Samarica, uma parteira da região; da descrição supreendente da paixão por uma égua; do festival hilário de lorotas muito criativas; do cabo que se deu ao galo da vizinha por ele ter-lhe beliscado o pé; dos efeitos revigorantes (dizem) do ovo de codorna; do tratamento inovador com “capim novo” para o amigo velho que já está enviesando o serviço, sem energias; da engraçadíssima narrativa de um sujeito medroso que não soube conquistar a donzela e mandou outro indivíduo, mais esperto, fazer o serviço; e por aí vai. 03 O mundo musical do Rei do Baião é um universo que não cabe em si mesmo. Quando musicou as redondilhas menores de Patativa, do poema “A Triste Partida”, não só contribuiu com a popularização da temática do sertanejo flagelado, que deixa seu torrão em busca de vida melhor em outras terras, como também ajudou a levar às demais regiões do País o nome dessa ave candora que tanto nos orgulha com poesia simples, pura e bela. Quando cantou o nosso conterrâneo ilustre Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, imortalizando o trava-língua “Quem a paca cara compra paca cara pagará”, criado por Firmino Teixeira do Amaral, o inventor, por sinal, desse gênero temático de poesia (veja este linque), novamente deu margem ao bate-papo tão bonito e produtivo entre música e literatura de cordel. Gonzagão registrou em música, como ninguém jamais havia feito, a fauna sertaneja, principalmente as aves, e a significação que elas têm para o homem do sertão. Histórias belíssimas, de uma riqueza ímpar, são contadas em canções como “Assum Preto”, talvez uma das mais lindas de Luiz e de Humberto Teixeira; “Sabiá” e “Acauã”, ambas compostas com Zé Dantas; a mais famosa da dupla Humberto e Gonzagão, “Asa Branca”; “Fogo-pagou”; “Pássaro Carão” e por aí vai.
04     Hoje, de manhãzinha, assistindo a uma reportagem sobre o dia do forró, feita por emissora de tevê cearense, pude conferir os depoimentos de alguns músicos sobre a importância da canção de Gonzaga, e um deles, Waldonys, o Garoto Atrevido, como o Rei lhe chamava, disse uma verdade que revela uma das características musicais mais importantes de Gonzagão, um traço que só pode ser encerrado por verdadeiros gênios da música: a canção de Gonzaga é atemporal! Você não escuta um sujeito dizer, ao ouvir uma música sua: “Eita, que essa é das antigas!”. Isso não existe quando o assunto é o Rei do Baião, um artista atualíssimo, principalmente porque cantou um tema imarcescível, que é o tema sertanejo, um assunto perene no inconsciente popular de todo e qualquer nordestino. E, enquanto esse sentimento nordestino, popular, estiver vivo, pulsando dentro do nosso peito, a música de Gonzagão viverá!

Crônica: A origem da palavra “forró”.

E sobre a origem da palavra forró? Existem teorias mirabolantes que são, diariamente, difundidas nesses tempos de “livre comunicação”. Confundiram Jesus com Genésio e andam achando que não existe responsabilidade com o que é escrito quando o assunto é Internet.

“As palavras também têm seu romance de vida.” A. Guilherme Grings, A história natural no romance da etimologia.

   Não sei se já escrevi sobre o assunto nestas searas, mas não me furto a relembrar que nada tem que ver a palavra forró com a expressão inglesa for all. Isso é invenção de quem tem preguiça de pesquisar e vê nessa estratégia um jeito muito cômodo de falsear a etimologia. Admito que não deixa de ser engenhosa a associação. Afinal de contas, existe o contexto histórico para fortalecer a carcaça de uma tese que, em verdade, tem um chassi muito frágil. Na versão popular, conta-se que a palavra surgiu da leitura estropiada da expressão inglesa, com que os oficiais da base aérea estadunidense de Natal indicavam que a festa, o forró, era aberta para todos. Em outra versão, igualmente popular, diz-se que quem indicava a festa eram os engenheiros ferroviários da famosa companhia inglesa Great Western, a famosíssima "Gretueste", palavra assim pronunciada pelo matuto de um dos causos do nosso Jessier Quirino. Mas a etimologia popular, engenhosa, fruto do esfervilhamento de criatividade da mente do povo, como registram os livros de Linguística, é isso mesmo: é inventiva demais e, no mais das vezes, falsa. Então, se você ouvir uma história muito bem urdida, que soa muito engenhosa e verdadeira, seja cuidadoso, pare e vá pesquisar nos etimologistas mais sérios, que, antes de tudo, são filólogos, historiadores da língua. Desse modo, é quase certo que sejam etimologias puramente populares e mentirosas. O fato é que, infelizmente, a história da maioria das palavras da Língua Portuguesa é meio sem graça, sem a cor, o cheiro e o sabor que só o povo sabe e pode lhe dar. A gente lê as etimologias populares como quem se deleita com uma crônica humorística, como quem se encanta com os contos populares registrados por Câmara Cascudo. A gente lê a história falsa de um vida verdadeira, pungente, que têm as palavras que o povo costuma usar, e lamenta por não serem esses registros, de domínio público, a sua verdadeira biografia, como se fossem contos do fantástico.

“Como a etimologia ensina coisas — é como se a origem das palavras contivesse toda a sabedoria do mundo.” M. Julieta Drummond de Andrade, O valor da vida.

   E a etimologia correta? Bom, forró formou-se da redução de forrobodó, uma palavra muito mais antiga do que qualquer base aérea estadunidense ou do que qualquer uma das linhas férreas da Great Western. O étimo data do período colonial e significa baile popular ou mesmo confusão. Hoje em dia, o povo costuma, com mais frequência, fazer referência, usando a palavra forró, à música que é tocada no baile, numa espécie de metonímia que se foi construindo com o tempo. E, com o apagamento da etimologia, legada ao limbo da memória dos falantes, deu-se a catacrese. Os gêneros musicais sertanejos chamados baião e xote é que são tocados no baile chamado forró, ou forrobodó.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Poesia: A Aquarela da Vida e as Cores que a Vida Tem.

    O que uma prova de pneumologia não faz com o sujeito? Revisando, na véspera, de madrugada, após feitas algumas sextilhas mnemônicas sobre as condutas para TEP, DPOC, pneumonias etc., fui tomado por uma vontade doida de escrever à toa. Como quem psicografa, escrevi dezoito sextilhas bem simples. E fiz num intervalo de tempo que não é bem meu: meia hora, estourando. Digo logo aos foristas amigos, confrades das discussões gramaticais, que o mais que fiz foi respeitar a expressão popular dos versos e que, quando der de escrever pés aos moldes das regras de nossa Gramática, a saírem com alguma graça, também não me furtarei de com eles semear esta seara. 
    Falando, ao telefone, com um bom e velho amigo, que leu os versos com exclusividade, disse-lhe que se me surgiram na mente após um esfervilhamento de juízo que me atacou numa madrugada dessas, após uma crise de tédio. Ele perguntou-me do título… Uma metáfora das coisas bonitas da vida, do (des)controle do homem sobre seu destino, da diferença dos amores mundano e divino, do prumo que dá Nosso Senhor a nossas mãos, para que se possa desenhar, com verdade e beleza, a aquarela da vida.

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A Aquarela da Vida 
E as Cores que a Vida Tem.

(Gustavo Henrique S. A. Luna)

Quem na vida padeceu
Por amor correspondido
Da vida não entendeu
O belo e real sentido,
Pois no amor só perdeu
O que tanto é perseguido.

Se lamenta tendo amor,
Verdadeiro amor não tem.
Um esboço pode ter,
Que o verdadeiro só tem
Aquele que vê na vida
A grandeza que o amor tem.

Se o calor da união
Não satisfaz o teu peito,
O problema não é o calor.
É o modo como ele é feito,
Porque calor verdadeiro
Endoida qualquer sujeito.

Tragante feito maré
É o sorriso feminino.
Te puxa ou te derruba.
Não depende do destino.
Depende de como tratas
O gênero feminino.

Tem um cabra que se mete
E dana a falar besteira,
Dizendo que o correto
É amor de gafieira.
Primeiro, ofende o amor;
Depois, a vida inteira.

O amor está em tudo.
Na poesia, também.
Mas tem gente que se engana,
Achando que ele tem
Um tal código secreto
Pra amar e querer bem.

Pra amar não tem segredo.
Basta com o Amor nascer,
Vivenciando em família,
O seu amadurecer.
Depois, pra compartilhar,
Nenhum esforço fazer.

Assim se vive com Deus
Agraciando o teu peito,
Com o amor verdadeiro,
Que é todo teu de direito,
Desde o romper da vida
Até parar o teu peito.

A velhice pode vir,
Mas o amor não se vai.
Parece que é divino.
Deve ser coisa do Pai.
O corpo pode esquecer
O que da alma não sai.

O amor mora na alma.
Dela faz sua residência,
Alimentando o espírito,
Recheando a consciência,
De pensamentos bonitos
Da Divina Providência.

Tudo isso pinta a vida
Com as cores que o amor tem.
Numa aquarela bonita,
Do pincel o vai-e-vem
Vai delineando os traços,
As curvas que a vida tem.

As linhas são tortuosas,
Mas o conjunto é perfeito.
O movimento da vida,
Brotando dentro do peito,
Se estica e percorre o braço,
E, com o pincel, ele é feito.

Cada traço é uma etapa
Em que se confunde a vida
Com a própria história do amor
Numa aquarela florida.
Se puxa um traço mais longo,
Parece a vida comprida.

Quando a vida é recheada
Com os tons que dá o amor,
Parece que ganha vida
A obra que fez o pintor.
E se a obra é perfeita,
O artista é Nosso Senhor.

Se me toca a aquarela
Depois que ela fica pronta.
Mais me toca é o processo,
Quando vejo, ponta a ponta.
Primeiro, o romper da vida
Do pincel tocando a ponta.

O entremeio é bonito.
Nele a gente faz nascer,
Se o amor é permitido,
Ou então deixa morrer.
Mas, se é compartilhado,
Faz a vida florescer.

A vida é esta pintura,
Obra de todo sujeito,
Que é dono do pincel,
Mas que não pensa direito,
Achando que cada traço
Vem direto de seu peito.

Só Deus apruma o teu punho,
Nessa arte de pintar.
É coisa que se aprende,
Se deixar Deus ensinar,
E, se não deixa, sai torto,
Não aprende a desenhar.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Crônica: Adeus, doce França.

Adeus, doce França

José Lins do Rego

    Volto hoje às minhas criaturas, aos rudes homens do cangaço, às mulheres, aos sertanejos castigados, às terras tostadas de sol e tintas de sangue, ao mundo fabuloso do meu romance, já no meio do caminho.
    Os dias de França me deram uma sensação de pausa, de espanto, de novos contactos sonhados desde menino. Vi terras por onde andaram os doze pares de França, os heróis do meu Carlos Magno, lido e relido como história de Trancoso. Vi terras do sul, o mar Mediterrâneo, o mar da história, o mar dos gregos, dos egípcios, dos fenícios, dos romanos. Mas o nordestino tinha que voltar à sua realidade, à realidade maior que a história do mundo, isto é, à história dos seus homens, dos cangaceiros brutais, carregados de vida bárbara, de instintos cruéis de uma força, porém, que não se extingue nunca, porque é a energia de uma raça de homens mais duros do que as pedras dos seus lajedos.
    Volto aos "Cangaceiros" e desde logo tudo o que vi e senti se refugia no fundo da sensibilidade, para que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas enchem, outra vez, de correntezas.
    Volto ao terrível Aparício que mata igual a um flagelo de Deus, ao monstruoso Negro Vicente, ao triste Bentinho, ao místico Domício, aos umbuzeiros carregados de frutos, aos mandacarus de floração de sangue, aos cantadores de estrada, às mulheres sofredoras, às noites de lua, aos tiroteios, ao crime e ao amor, à poesia barbaresca e vigorosa de um povo que é maior do que a terra que o criou.
    Volto contente e disposto a tudo.
    Adeus, doce França. Agora os espinhos me arranham o corpo e as tristezas me cortam a alma.

O texto acima foi extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 33.

(fonte: releituras.com)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Poesia: A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho.

A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho

Capa do folheto "Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho".

Firmino Teixeira do Amaral

Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.

Um dia, determinei
A sair do Quixadá —
Uma das belas cidades
Do estado do Ceará
Fui até o Piauí
Ver os cantores de lá.

Me hospedei na Pimenteira,
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior
No Angico e na Baixinha
De lá tive um convite
Para cantar na Varzinha.

Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
— Cego, você não tem medo
Da fama de Zé Pretinho?

Eu lhe disse: — Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo —
Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!

O dono da casa disse:
Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos —
Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.

Chamando um dos filhos, disse:
— Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá —
E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.

Em casa do tal Pretinho
Foi chegando o portador,
E dizendo: — Lá em casa
Tem um cego cantador
E meu pai manda dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!

Zé Pretinho respondeu:
— Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!

Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
Às cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.

O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram de uma só vez,
Todos no primeiro arranco.

Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:

Vieram o capitão Duda,
Tonheiro, Pedro Galvão,
Augusto Antônio Feitosa,
Francisco Manuel Simão,
Senhor José Campineiro,
Tadeu e Pedro Aragão.

O José das Cabeceiras
E seu Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.

Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias,
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.

Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras —
Essas eram da igreja
As mais exímias cantoras.

Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Raimundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.

Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha —
Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.

Depois, trouxeram o negro,
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.

Ele tirou a viola
Dum saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
— Oh, que viola bonita!

Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.

Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por está em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
— Meu Deus, que rabeca feia!

Um disse a Zé Pretinho:
— A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja.
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!

E disse o capitão Duda,
Como homem mui sensato:
— Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato —
Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!

Disse mais: — Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta —
Da minha parte, dou dez!

Me disse o capitão Duda:
— Cego, você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor —
Nada leva quem apanha!

E nisto as moças disseram:
— Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da parte dele, deu dez…
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.

Então disse Zé Pretinho:
— De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo —
Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo...

Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse a mim:
— O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!

Então eu disse: — Seu Zé,
Sei que o senhor tem ciência —
Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!

P. — Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho —
Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!

C. — Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação —
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!...
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!

P. — Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho —
Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!

C. — Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na sala
Rosas e trovas de amores —
Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!

P. — Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus —
O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!

C. — Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim —
Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!

P. — Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira pura —
O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!

C. — Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo —
Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!

P. — Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro —
Sai dizendo: — Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!

C. — Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua —
Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!

P. — No sertão, peguei
Cego malcriado —
Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!

C. — Negro, és monturo,
Molambo rasgado,
Cachimbo apagado,
Recanto de muro!
Negro sem futuro,
Perna de tição,
Boca de porão,
Beiço de gamela,
Vento de moela,
Moleque ladrão!

P. — Vejo a coisa ruim —
O cego está danado!
Cante moderado,
Que não quero assim!
Olhe para mim,
Que sou verdadeiro,
Sou bom companheiro —
Canto sem maldade
E quero a metade,
Cego, do dinheiro!

C. — Nem que o negro seque
A engolideira,
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abeque —
Mas esse moleque
Hoje dá pinote!
Boca de bispote,
Vento de boeiro,
Tu queres dinheiro?
Eu te dou chicote!

P. — Cante mais moderno,
Perfeito e bonito,
Como tenho escrito
Cá no meu caderno!
Sou seu subalterno,
Embora estranho —
Creio que apanho
E não dou um caldo...
Lhe peço, Aderaldo,
Que reparta o ganho!

C. — Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo —
Cara de cavalo,
Cabeça de burro!

P. — Fale de outro jeito,
Com melhor agrado —
Seja delicado,
Cante mais perfeito!
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero!
Cantemos maneiro,
Com verso capaz —
Façamos a paz
E parto o dinheiro!

C. — Negro careteiro,
Eu te rasgo a giba,
Cara de gariba,
Pajé feiticeiro!
Queres o dinheiro,
Barriga de angu,
Barba de guandu,
Camisa de saia,
Te deixo na praia,
Escovando urubu!

P. — Eu vou mudar de toada,
Pra uma que mete medo —
Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!

C. — Zé Preto, esse teu enredo
Te serve de zombaria!
Tu hoje cegas de raiva
E o Diabo será teu guia —
É um dia, é um dedo, é um dado,
É um dado, é um dedo, é um dia!

P. — Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu também, da minha parte,
Canto versos aprumado —
É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!

C. — Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!

P. — Cego, agora puxa uma
Das tuas belas toadas,
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas —
Quase todo o povo ri,
Só as moças 'tão caladas!

C. — Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta —
Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!

P. — Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo —
Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!

C. — Disse uma vez, digo dez —
No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa —
Paca cara pagará,
Quem a paca cara compra!

P. — Cego, teu peito é de aço —
Foi bom ferreiro que fez —
Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!

C. — Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima,
Que não lhe caia na cara —
Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!

P. — Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já —
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca cacará!

Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse
— Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juízo,
Que o cego canta sozinho!

Ficou vaiado o pretinho
E eu lhe disse: — Me ouça,
José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!

Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto —
Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!

Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha,
Busquei o negro na saia,
Mas já estava na cozinha —
De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!

(fonte: Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho dos Tucuns. Jornal de Poesia, Fortaleza, 13 de junho de 1996. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/fi01.html>. Acesso em: 10 de julho de 2011.)

Comentário: Um grande amigo campos-salense havia-me falado da qualidade dessa famosa peleja, envolvendo o nosso conterrâneo Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, e o cantador piauiense Zé Pretinho, figura mítica. Conversei com Jackson Morais, o amigo, sobre ser o adversário de peleja do Cego uma personagem fictícia, obra da imaginação do cunhado do poeta cratense, que é do Piauí e se chama Firmino Teixeira do Amaral. Em uma pesquisa rápida na Internet, consultando o que achava no São Google, descobri que, de fato, Zé Pretinho nunca existiu e, por conseguinte, nunca houve a peleja; foi tudo criação de Firmino. Os versos foram, por muito tempo, atribuídos a Cego Aderaldo, que jamais tratou de desmentir, assumindo a autoria. No derradeiro de sua vida, o vate cratense chegou a pedir desculpas à comunidade negra por conta de alguns versos politicamente incorretos de sua peleja (em verdade, de Firmino). O verdadeiro autor dessa pega nasceu em 1886, em Bezerro Morto, no município de Amarração, hoje Luís Correia, e faleceu em Parnaíba, no ano de 1926. Firmino era jornalista e foi considerado um dos maiores cordelistas brasileiros de todos os tempos. Segundo estudiosos da Poesia Popular Nordestina, esse poeta piauiense foi o primeiro que engastou o trava-língua na poesia popular. Também criou os gêneros Parcela e Desmanches e, por sua importante contribuição à poesia, é tido por muitos como o mais brilhante poeta popular do Piauí. Ele, certamente, é o maior responsável pela mitificação da figura do poeta Cego Aderaldo, atribuindo-lhe diversas pelejas fictícias, tal como histórias e romances. O cordel “A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” foi escrito por volta de 1916 e é o mais famoso de Firmino. Segundo o que se conta, o cunhado do Cego havia escrito o folheto, publicado em 23 e atribuído a autoria ao parente, que estava doente e, portanto, impossibilitado de obter sustento com sua arte. Vale lembrar que a repercussão desse folheto foi enorme: o poema foi tema de estudos na Universidade de Paris (Sorbonne), chegou a ser gravado por João do Vale e Nara Leão, no álbum Opinião, e é lembrado na canção Cego Aderaldo, de João Silva e Maranguape, interpretada por Luiz Gonzaga, que nela canta o famosíssimo trava-língua “Quem a paca cara compra paca cara pagará”.

Sobre o poeta Cego Aderaldo, leia-se este trecho do livro “Eu Sou o Cego Aderaldo”, da editora Maltese, São Paulo, 1994:

“Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.

“Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia [sic] de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.

“Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás [sic] ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos.”

Caso o leitor, insatisfeito, queira ainda mais informações sobre o poeta cratense, há muito que ser lido no excelente Jornal de Poesia, hospedado no portal da Revista Agulha. O endereço é este: http://www.revista.agulha.nom.br/cego.html.

Findo por aqui o comentário desta postagem, que foi um pouco mais extenso do que o habitual porque (ora!) o Cego Aderaldo é do Crato! [rs.]

domingo, 30 de janeiro de 2011

Artigo: Bárbara de Alencar, a primeira presidente no Brasil

Bárbara de Alencar, a primeira presidente no Brasil

André Alves - 2/1/2011 - 20h44

Sábado (1), Dilma Rousseff (PT) tomou posse oficialmente como a primeira mulher presidente do Brasil. No entanto, há 250 anos, nasceu, na cidade de Exu, interior de Pernambuco, outra mulher não muito conhecida pelo grande público mas que se tornaria posteriormente a primeira presidente de uma República dentro do território nacional.

Trata-se de Bárbara de Alencar, presa em Fortaleza em 1817 por participar de movimentos em prol da independência do País e por ter liderado o movimento que proclamou a chamada República do Crato, uma extensão da Revolução Pernambucana que defendia a instituição da República no País. Apesar de ter durado apenas oito dias, a República do Crato, da qual Bárbara foi presidente, joga uma nova luz em relação ao discutível pioneirismo de Dilma.

Avó do escritor

Bárbara de Alencar mudou-se ainda adolescente para a então Vila do Crato, no Ceará, localizada no sopé da Chapada do Araripe no extremo-sul do estado e na microrregião do Cariri, próximo à divisa com Pernambuco. Ali, ela se casou com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, com quem teve quatro filhos, entre eles Tristão de Alencar e José Martiniano de Alencar, pai do escritor José de Alencar, um dos expoentes do Romantismo brasileiro na literatura.

De acordo com a historiadora e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Adelaide Gonçalves, Bárbara foi uma mulher de muita fibra e coragem, além de defensora do idealismo republicano em um país então governado pela monarquia portuguesa. "O engajamento político dela, de certa forma, está muito ligado à movimentação política de seus filhos, principalmente de Tristão de Alencar", disse Adelaide.

Movimento de emancipação

A Revolução Pernambucana de 1817, que objetivava a independência do Brasil e a proclamação da República, durou menos de três meses. Bárbara, segundo a professora, teve um papel muito importante, tanto no movimento, quanto na Confederação do Equador, em 1824.

Em 1817, ela acompanhou seus filhos José Martiniano de Alencar e Tristão de Alencar  no movimento de emancipação. "Em primeiro lugar, ela mereceu destaque por ser mulher em uma época em que as mulheres se limitavam apenas aos afazeres domésticos. Ela ousou sair do espaço privado para o protagonismo político." Outro ponto ressaltado por Adelaide é que Bárbara esteve à frente do movimento, em relação à propagação das ideias. "Era tida como uma subversiva", afirmou. 

Crato ganhou destaque por ser a única localidade cearense que aderiu ao movimento libertador de Pernambuco em 1817. Bárbara de Alencar, ao lado de seus filhos e outras lideranças, sublevaram a população e proclamaram no local a República do Crato, que teve a duração de apenas oito dias. A presidência da nova república foi conferida a ela. Para a professora, apesar de curto, não se deve julgar a eficácia e a legitimidade de um movimento pela sua duração. "Eles estavam à frente no tempo, por se insurgirem contra as razões dominantes."

Cela subterrânea

Restaurado o governo monárquico, as lideranças do movimento foram presas. Entre elas estava Bárbara, considerada a primeira presa política do Brasil. Cerca de 150 anos depois, isso também ocorreria com a presidente Dilma Rousseff durante o regime militar.

Bárbara foi levada para uma minúscula cela subterrânea da Fortaleza de Nossa Senhora do Assunção,  localizada à margem esquerda da foz do riacho Pajeú, sobre o monte Marajaitiba, na cidade de Fortaleza, onde atualmente está instalada a sede da 10ª Região Militar do Exército Brasileiro. O local, aberto à visitação, ostenta uma placa de metal com a inscrição: "Aqui gemeu longos dias D. Bárbara de Alencar, víctima em 1817 da tyrannia do governador Sampaio".

No total, ela ficou detida por quatro anos, em Fortaleza, Recife e Salvador. Só ganhou a liberdade pelo ato de anistia geral de novembro de 1821. Três anos depois, seus três filhos homens entraram na luta da Confederação do Equador. Dois deles morreram. 

Bárbara morreu em 28 de agosto de 1832, na fazenda Alecrim, no  Piauí,  e foi  sepultada em Poço Pedras, hoje Campos Sales.

Memória

A historiadora considera que Bárbara de Alencar de fato foi a primeira presidente mulher dentro de uma República instalada no território brasileiro.

Mas na opinião de Adelaide, uma vez que, "do ponto de vista histórico formal, a República só foi proclamada em 1889, é preciso ter muito cuidado com a história, já que o movimento de 1817 estava circunscrito a uma determinada região do País". Entretanto, a professora admite a importância de Bárbara e do trabalho de recuperação de sua memória.

"Infelizmente, apesar de toda essa relevância, ela teve uma história quase invisível", concluiu Adelaide.

(fonte: Alves, A. Bárbara de Alencar, a primeira presidente no Brasil. Diário do Comércio, São Paulo, 2 de janeiro de 2011. Disponível em: <http://www.dcomercio.com.br/>. Acesso em: 7 de janeiro de 2011.)

Comentário: Bom, acho que apenas o jornal cearense O Povo, por meio de texto de leitor publicado na versão on-line desse periódico, tratou do assunto primeira presidente no Brasil, com referência, obviamente, a Bárbara de Alencar. Surpreende-me, entanto, que um jornal paulista, o Diário do Comércio, trate, dedicando uma página inteira (leia a versão impressa neste linque), de assunto que deveria, por motivos óbvios, ter sido mais ventilado por estas bandas. Não temo dizer que li, com algum orgulho, a referência bem precisa que se fez à República do Crato, por mais que tenha sido efêmera e, para a historiografia “formal”, como disse a prof.ª Adelaide Gonçalves, tenha sido um caso “circunscrito a uma determinada região do País”. Essa matéria fez-me lembrar da manhã do dia 3 de maio de 2007, quando ouvi, no Jornal de Vicelmo, da Rádio Educadora do Cariri, a referência ao aniversário de 190 anos da proclamação da República do Crato. Não lembro, ipsis verbis, o discurso do radialista; tenho, entanto, a impressão de que foi dito, naquela voz singularíssima de Vicelmo, algo semelhante a “Em 3 de maio de 1817, o diácono José Martiniano de Alencar, de batina e roquete, subiu ao púlpito da Matriz de Crato e proclamou a Independência e a República”. Então não sabia desse fato; estranhei bastante que o nosso Crato já tivesse sido proclamado independente e, de quebra, passasse a ser a República do Crato. Lembro ter comentado com os colegas estudantes, que, incrédulos, me diziam que estava de brincadeira e que o que eu havia escutado era potoca. No entanto, no mesmo dia, já de volta a casa, pude pesquisar sobre o assunto (obviamente não fiz isso por duvidar do que foi informado) e pude colher ainda mais informações sobre o fato, como, por exemplo, as circunstâncias da proclamação. Perceberam então os colegas a seriedade do assunto e, vendo eu a surpresa no cenho deles, tratei de não esticar o papo.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Crônica: Os Amantes.

Os Amantes

Rubem Braga

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender.
    Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando. Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado até que o aparelho silenciasse.
    Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos era toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um estrondo distante de bondes, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador. Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos, quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo estaria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade, devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho; o relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas; mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos jamais.
    Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois, e o milagre se repetia tão quieto e perfeito como se fosse ser assim eternamente.
    Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar seus olhares, dizer suas coisas, ferir com sua maldade ou sua tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais, nunca mais haverá. 
    No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? 
    Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia 10, 15 vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas.
    Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez, experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
    Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivesse o cheiro de seus cabelos, se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”.
    Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível, como um lento, lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam?
    Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.
    Houve um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei 5 quilos, o homem fez um grande embrulho de jornal; voltei carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta, e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e o nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isso num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

Julho, 1952

(fonte: crônica extraída do livro “200 crônicas escolhidas”, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1978.)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.