sábado, 28 de janeiro de 2012

Crônica: Balneário, futebol e um chevette.

Chevrolet Chevette (1980)

Balneário, futebol e um chevette

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Fim de semana significava balneário, e assim todo o mundo combinava o programão: a reca de amigos, o chevette azul do primo, o corcel, e a promessa de manhã prazenteira: o futebolzinho, os banhos no Serrano e o almoço em Chico da Cascata. Um sempre se encarregava da bebida: a indefectível Kariri, para o momento certo. Era ritual praticado por absolutamente todos do grupo. Certamente nunca houve movimento sabatino mais imperioso do que essa reunião de doze amigos de longa data. Praticamente um ritual.
    Em ocasiões bem especiais, quando a empolgação era um tantinho maior e a Kariri um pouco mais convidativa, punham em prática o espetáculo que chamava a atenção de quase todos do clube: o racha entre duas equipes compostas por atletas autoconfiantes, por duas seleções recheadas de craques, completamente chumbados, entanto. Todo o mundo melado disputava o domínio da bola, outros tentavam ficar em pé, alguns praguejavam contra o gramado ou a falta dele, e o goleiro com seus reflexos duvidosos, em se levando gol, sempre punha a culpa num zagueiro mais distraído, que marcava o próprio companheiro de zaga. Um dos bruegas sempre tentava racionalizar a decadência de seu time dizendo que o motivo do desempenho capenga seria a altitude do clube e, em perdendo o embate, ameaçava a equipe adversária, intimando a que jogassem em plano mais baixo. Repetia que aquela subida do Lameiro rarefazia o ar, prejudicava a respiração e assim sua equipe jamais poderia dar o melhor de si.
    Como era de se esperar, sempre havia um gol contra. E tudo começava com um passe errado. Em nada adiantava separar os times em vestidos e descamisados, que o nível de embriaguez suplantava a percepção desse detalhe. Sempre havia um escroto que recebia um toque equivocado do zagueiro adversário e, como se fosse feitiço ou proselitismo de fanático, se convertia, achando ser do time do que lhe fez a assistência. Era o princípio do gol contra, que, a bem dizer, não tinha tanta importância se o jogo já estivesse bem adiantado. Nessa ocasião, ninguém percebia que era contra e todo o mundo comemorava do mesmo jeito. Assim era um prato cheio assistir ao atacante sair driblando a la Marrentinho Carioca todos os companheiros de time e arrematar a jogada de mestre. Contra, mas de mestre.
    Dava onze da manhã e a próxima parada era Chico, os doze se distribuíam nos dois veículos, o chevette do primo e o corcel branco. Iam todos assardinhados naqueles dois fósseis ambulantes, todos barulhentos, falando bosta e botando boneco numa viagem suicida. Um dos bêbados cara-de-pau ainda tinha o topete de reclamar da via e de suas curvas sinuosas, e também sempre havia aquele que reclamava da lerdeza do condutor bocó, dizendo que não haveria mais peixe nem baião quando chegassem em Chico.
    Nessa tarde, voltando do restaurante, que, por sinal, serve o melhor peixe frito com fruta-pão e baião-de-dois da região caririense, o primo ferrou o chevette azul, bala, todo restaurado, na lateral de um C4 Pallas, na descida do Lameiro. Um dos amigos, no banco do carona, voltava com o abalroador.
    O carona pensou que o resto de juízo do primo fosse embora diante da desgraceira que tinha provocado no carro alheio. Ele, no entanto, já bem melado, saiu do chevette gritando, com toda a verve de poeta do caradurismo que só a Kariri com K pode lhe inspirar:

— Essa tua carroça apapagaiada é muito desaforada pra se meter na frente de meu chevette!

    E, antes que o outro dissesse um ai de protesto, o cu-de-cana prosseguiu o seu discurso molhado, que faria inveja a qualquer um dos mais profundos e ataviados discursos do Águia de Haia.

— Mas, como pareces ser sujeito algo inopioso e sou mui generoso e indulgente…

    Aí lascou, foi a vez em que o bruega começou a ordenar que o camarada abonasse suas qualidades, papo de bêbado chato, como se todo o caráter “incutucável” do infeliz dependesse de seu depoimento. E, dentro do carro, já impaciente, ia confirmando tudo… “Inopioso”, o égua deu até de retirar aquele adjetivo feio da cachimônia triscada. Mas, então, já satisfeito com a participação do parente, voltou a soluçar o discurso ao dono do C4:

— Como dissera, sou mui generoso e por isso mesmo me apiedo imensamente de ti, façamos, pois, o seguinte: para não te prejudicar financeiramente, tu pagas o teu, que eu pago o meu. E fim de papo!

    Entrou no chevette amassado e arrancou.

 

(fonte e licença da imagem: http://bit.ly/xotVlE e http://bit.ly/yeqiSm)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Poesia: O vetor são os teus olhos, do atroz vírus do Amor.

    Um quadrão sem o estribilho final evidentemente não é um quadrão. Para não blasfemar contra o rigor desse gênero popular de poesia, assim não chamo esses oitos pés que fiz agorinha, apesar de os elementos da versificação estarem interiços. 

   Dedico estas linhas ao olhar perigoso, contagioso, das moças fagueiras, que contaminam de amor o mundo que uns tantos teimam em enfear.

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O vetor são os teus olhos,
Do atroz vírus do amor.

(Gustavo Henrique S. A. Luna)

 

O olhar é uma facada,
De peixeira enferrujada,
De amor contaminada,
Desvirtuando o meu ser.
Desse mal padecerei,
E a ele me entregarei,
Dele só me livrarei,
Quando de amor eu morrer!

Dessa doença eu padeço
Pois quero, com todo o apreço,
Essa chaga, que eu mereço
Ser moribundo de amor.
De moribundez eterna
Minha feição é subalterna
Ao mal que sempre governa
E é nobre guerreador.

Doencinha perigosa
Fingindo ser mui manhosa
Com os olhos dedilha a prosa
De rico vocabulário.
São duas glosas de amor,
Obras de Nosso Senhor,
Dois olhos de tal fulgor
Merecem proprietário.

Uma pugna em que eu luto
Seguindo um regime bruto
E com dois olhos disputo
A graça da moça inteira.
Me vendo, ela não se rende,
Com gosto, o corpo me prende
Faz vinco na alma, fende,
Com violência fagueira.

Pois que seja eu o dono
E tire do abandono,
Depois coloque num trono
Essas duas joias raras.
Que assim terão bom destino
Esses dois globos divinos,
E neles eu descortino
Do mundo as belezas caras.

É um misto de enlace e guerra,
Contenda que não se encerra,
Só finda quando soterra
O mais feliz perdedor.
Diz que então morre contente,
Pois de amor foi um doente,
Contraiu por acidente,
O atroz vírus do amor.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.