A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho
Firmino Teixeira do Amaral
Apreciem, meus leitores, Um dia, determinei Me hospedei na Pimenteira, Quando cheguei na Varzinha, Eu lhe disse: — Não, senhor, O dono da casa disse: Chamando um dos filhos, disse: Em casa do tal Pretinho Zé Pretinho respondeu: Tudo zombava de mim O preto vinha na frente, Saudaram o dono da casa Vieram o capitão Duda, O José das Cabeceiras Amadeu, Fábio Fernandes, Foi dona Merandolina, Foi também Pedro Martins, Levaram o negro pra sala Depois, trouxeram o negro, Ele tirou a viola Então, para eu me sentar, Eu tirei a rabequinha Um disse a Zé Pretinho: E disse o capitão Duda, Disse mais: — Eu quero ver Me disse o capitão Duda: E nisto as moças disseram: Então disse Zé Pretinho: Afinemos o instrumento, Então eu disse: — Seu Zé, P. — Sai daí, cego amarelo, C. — Já vi que seu Zé Pretinho P. — Esse cego bruto, hoje, C. — Seu José, o seu cantar P. — Cego, eu creio que tu és | C. — Zé Preto, não me aborreço P. — Cala-te, cego ruim! C. — Esse negro foi escravo, P. — Eu te dou uma surra C. — Se eu der um tapa P. — No sertão, peguei C. — Negro, és monturo, P. — Vejo a coisa ruim — C. — Nem que o negro seque P. — Cante mais moderno, C. — Negro é raiz P. — Fale de outro jeito, C. — Negro careteiro, P. — Eu vou mudar de toada, C. — Zé Preto, esse teu enredo P. — Cego, respondeste bem, C. — Vamos lá, seu Zé Pretinho, P. — Cego, agora puxa uma C. — Amigo José Pretinho, P. — Cego, eu estou apertado, C. — Disse uma vez, digo dez — P. — Cego, teu peito é de aço — C. — Arre! Que tanta pergunta P. — Agora, cego, me ouça: Houve um trovão de risadas, Ficou vaiado o pretinho Me desculpe, Zé Pretinho, Quando eu fiz estes versos, |
(fonte: Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho dos Tucuns. Jornal de Poesia, Fortaleza, 13 de junho de 1996. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/fi01.html>. Acesso em: 10 de julho de 2011.)
Comentário: Um grande amigo campos-salense havia-me falado da qualidade dessa famosa peleja, envolvendo o nosso conterrâneo Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, e o cantador piauiense Zé Pretinho, figura mítica. Conversei com Jackson Morais, o amigo, sobre ser o adversário de peleja do Cego uma personagem fictícia, obra da imaginação do cunhado do poeta cratense, que é do Piauí e se chama Firmino Teixeira do Amaral. Em uma pesquisa rápida na Internet, consultando o que achava no São Google, descobri que, de fato, Zé Pretinho nunca existiu e, por conseguinte, nunca houve a peleja; foi tudo criação de Firmino. Os versos foram, por muito tempo, atribuídos a Cego Aderaldo, que jamais tratou de desmentir, assumindo a autoria. No derradeiro de sua vida, o vate cratense chegou a pedir desculpas à comunidade negra por conta de alguns versos politicamente incorretos de sua peleja (em verdade, de Firmino). O verdadeiro autor dessa pega nasceu em 1886, em Bezerro Morto, no município de Amarração, hoje Luís Correia, e faleceu em Parnaíba, no ano de 1926. Firmino era jornalista e foi considerado um dos maiores cordelistas brasileiros de todos os tempos. Segundo estudiosos da Poesia Popular Nordestina, esse poeta piauiense foi o primeiro que engastou o trava-língua na poesia popular. Também criou os gêneros Parcela e Desmanches e, por sua importante contribuição à poesia, é tido por muitos como o mais brilhante poeta popular do Piauí. Ele, certamente, é o maior responsável pela mitificação da figura do poeta Cego Aderaldo, atribuindo-lhe diversas pelejas fictícias, tal como histórias e romances. O cordel “A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” foi escrito por volta de 1916 e é o mais famoso de Firmino. Segundo o que se conta, o cunhado do Cego havia escrito o folheto, publicado em 23 e atribuído a autoria ao parente, que estava doente e, portanto, impossibilitado de obter sustento com sua arte. Vale lembrar que a repercussão desse folheto foi enorme: o poema foi tema de estudos na Universidade de Paris (Sorbonne), chegou a ser gravado por João do Vale e Nara Leão, no álbum Opinião, e é lembrado na canção Cego Aderaldo, de João Silva e Maranguape, interpretada por Luiz Gonzaga, que nela canta o famosíssimo trava-língua “Quem a paca cara compra paca cara pagará”.
Sobre o poeta Cego Aderaldo, leia-se este trecho do livro “Eu Sou o Cego Aderaldo”, da editora Maltese, São Paulo, 1994:
“Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
“Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia [sic] de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.
“Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás [sic] ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos.”
Caso o leitor, insatisfeito, queira ainda mais informações sobre o poeta cratense, há muito que ser lido no excelente Jornal de Poesia, hospedado no portal da Revista Agulha. O endereço é este: http://www.revista.agulha.nom.br/cego.html.
Findo por aqui o comentário desta postagem, que foi um pouco mais extenso do que o habitual porque (ora!) o Cego Aderaldo é do Crato! [rs.]