domingo, 30 de janeiro de 2011

Artigo: Bárbara de Alencar, a primeira presidente no Brasil

Bárbara de Alencar, a primeira presidente no Brasil

André Alves - 2/1/2011 - 20h44

Sábado (1), Dilma Rousseff (PT) tomou posse oficialmente como a primeira mulher presidente do Brasil. No entanto, há 250 anos, nasceu, na cidade de Exu, interior de Pernambuco, outra mulher não muito conhecida pelo grande público mas que se tornaria posteriormente a primeira presidente de uma República dentro do território nacional.

Trata-se de Bárbara de Alencar, presa em Fortaleza em 1817 por participar de movimentos em prol da independência do País e por ter liderado o movimento que proclamou a chamada República do Crato, uma extensão da Revolução Pernambucana que defendia a instituição da República no País. Apesar de ter durado apenas oito dias, a República do Crato, da qual Bárbara foi presidente, joga uma nova luz em relação ao discutível pioneirismo de Dilma.

Avó do escritor

Bárbara de Alencar mudou-se ainda adolescente para a então Vila do Crato, no Ceará, localizada no sopé da Chapada do Araripe no extremo-sul do estado e na microrregião do Cariri, próximo à divisa com Pernambuco. Ali, ela se casou com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, com quem teve quatro filhos, entre eles Tristão de Alencar e José Martiniano de Alencar, pai do escritor José de Alencar, um dos expoentes do Romantismo brasileiro na literatura.

De acordo com a historiadora e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Adelaide Gonçalves, Bárbara foi uma mulher de muita fibra e coragem, além de defensora do idealismo republicano em um país então governado pela monarquia portuguesa. "O engajamento político dela, de certa forma, está muito ligado à movimentação política de seus filhos, principalmente de Tristão de Alencar", disse Adelaide.

Movimento de emancipação

A Revolução Pernambucana de 1817, que objetivava a independência do Brasil e a proclamação da República, durou menos de três meses. Bárbara, segundo a professora, teve um papel muito importante, tanto no movimento, quanto na Confederação do Equador, em 1824.

Em 1817, ela acompanhou seus filhos José Martiniano de Alencar e Tristão de Alencar  no movimento de emancipação. "Em primeiro lugar, ela mereceu destaque por ser mulher em uma época em que as mulheres se limitavam apenas aos afazeres domésticos. Ela ousou sair do espaço privado para o protagonismo político." Outro ponto ressaltado por Adelaide é que Bárbara esteve à frente do movimento, em relação à propagação das ideias. "Era tida como uma subversiva", afirmou. 

Crato ganhou destaque por ser a única localidade cearense que aderiu ao movimento libertador de Pernambuco em 1817. Bárbara de Alencar, ao lado de seus filhos e outras lideranças, sublevaram a população e proclamaram no local a República do Crato, que teve a duração de apenas oito dias. A presidência da nova república foi conferida a ela. Para a professora, apesar de curto, não se deve julgar a eficácia e a legitimidade de um movimento pela sua duração. "Eles estavam à frente no tempo, por se insurgirem contra as razões dominantes."

Cela subterrânea

Restaurado o governo monárquico, as lideranças do movimento foram presas. Entre elas estava Bárbara, considerada a primeira presa política do Brasil. Cerca de 150 anos depois, isso também ocorreria com a presidente Dilma Rousseff durante o regime militar.

Bárbara foi levada para uma minúscula cela subterrânea da Fortaleza de Nossa Senhora do Assunção,  localizada à margem esquerda da foz do riacho Pajeú, sobre o monte Marajaitiba, na cidade de Fortaleza, onde atualmente está instalada a sede da 10ª Região Militar do Exército Brasileiro. O local, aberto à visitação, ostenta uma placa de metal com a inscrição: "Aqui gemeu longos dias D. Bárbara de Alencar, víctima em 1817 da tyrannia do governador Sampaio".

No total, ela ficou detida por quatro anos, em Fortaleza, Recife e Salvador. Só ganhou a liberdade pelo ato de anistia geral de novembro de 1821. Três anos depois, seus três filhos homens entraram na luta da Confederação do Equador. Dois deles morreram. 

Bárbara morreu em 28 de agosto de 1832, na fazenda Alecrim, no  Piauí,  e foi  sepultada em Poço Pedras, hoje Campos Sales.

Memória

A historiadora considera que Bárbara de Alencar de fato foi a primeira presidente mulher dentro de uma República instalada no território brasileiro.

Mas na opinião de Adelaide, uma vez que, "do ponto de vista histórico formal, a República só foi proclamada em 1889, é preciso ter muito cuidado com a história, já que o movimento de 1817 estava circunscrito a uma determinada região do País". Entretanto, a professora admite a importância de Bárbara e do trabalho de recuperação de sua memória.

"Infelizmente, apesar de toda essa relevância, ela teve uma história quase invisível", concluiu Adelaide.

(fonte: Alves, A. Bárbara de Alencar, a primeira presidente no Brasil. Diário do Comércio, São Paulo, 2 de janeiro de 2011. Disponível em: <http://www.dcomercio.com.br/>. Acesso em: 7 de janeiro de 2011.)

Comentário: Bom, acho que apenas o jornal cearense O Povo, por meio de texto de leitor publicado na versão on-line desse periódico, tratou do assunto primeira presidente no Brasil, com referência, obviamente, a Bárbara de Alencar. Surpreende-me, entanto, que um jornal paulista, o Diário do Comércio, trate, dedicando uma página inteira (leia a versão impressa neste linque), de assunto que deveria, por motivos óbvios, ter sido mais ventilado por estas bandas. Não temo dizer que li, com algum orgulho, a referência bem precisa que se fez à República do Crato, por mais que tenha sido efêmera e, para a historiografia “formal”, como disse a prof.ª Adelaide Gonçalves, tenha sido um caso “circunscrito a uma determinada região do País”. Essa matéria fez-me lembrar da manhã do dia 3 de maio de 2007, quando ouvi, no Jornal de Vicelmo, da Rádio Educadora do Cariri, a referência ao aniversário de 190 anos da proclamação da República do Crato. Não lembro, ipsis verbis, o discurso do radialista; tenho, entanto, a impressão de que foi dito, naquela voz singularíssima de Vicelmo, algo semelhante a “Em 3 de maio de 1817, o diácono José Martiniano de Alencar, de batina e roquete, subiu ao púlpito da Matriz de Crato e proclamou a Independência e a República”. Então não sabia desse fato; estranhei bastante que o nosso Crato já tivesse sido proclamado independente e, de quebra, passasse a ser a República do Crato. Lembro ter comentado com os colegas estudantes, que, incrédulos, me diziam que estava de brincadeira e que o que eu havia escutado era potoca. No entanto, no mesmo dia, já de volta a casa, pude pesquisar sobre o assunto (obviamente não fiz isso por duvidar do que foi informado) e pude colher ainda mais informações sobre o fato, como, por exemplo, as circunstâncias da proclamação. Perceberam então os colegas a seriedade do assunto e, vendo eu a surpresa no cenho deles, tratei de não esticar o papo.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Crônica: Os Amantes.

Os Amantes

Rubem Braga

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender.
    Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando. Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado até que o aparelho silenciasse.
    Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos era toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um estrondo distante de bondes, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador. Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos, quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo estaria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade, devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho; o relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas; mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos jamais.
    Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois, e o milagre se repetia tão quieto e perfeito como se fosse ser assim eternamente.
    Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar seus olhares, dizer suas coisas, ferir com sua maldade ou sua tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais, nunca mais haverá. 
    No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? 
    Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia 10, 15 vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas.
    Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez, experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
    Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivesse o cheiro de seus cabelos, se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”.
    Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível, como um lento, lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam?
    Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.
    Houve um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei 5 quilos, o homem fez um grande embrulho de jornal; voltei carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta, e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e o nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isso num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

Julho, 1952

(fonte: crônica extraída do livro “200 crônicas escolhidas”, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1978.)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.