sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Crônica: Aula de Inglês.

Aula de Inglês

Rubem Braga

—  Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

—  No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

—  Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

—  No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

—  Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

—  No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

—  Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray.  Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

—  Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

—  Very wellVery well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

--  It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.

Maio, 1945

(fonte: releituras.com)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Gramática: Dois tímidos casos de dupla grafia.

     Mudanças sempre ocorrem. Uma das mais recentes foi a exclusão de todas os textos do antigo fórum SOLP, que, até então, tinha assumido o título Só Português, como já havia falado em postagens passadas. O que ora se fez foi a mudança da estrutura de linguagem do fórum, que, segundo seu mantenedor, é mais sólida e prática. Felizmente, desta vez, não perdi os textos que havia publicado no antigo fórum; vinha-os salvando em arquivo de texto. Mingua a coragem e a disposição para continuar a escrever textos no fórum, que agora está mais bonito, mas meio sem graça. Teimo, no entanto, em escrever um ou outro. Abaixo está o mais recente texto do fórum escrito por mim; trata de duas das mudanças trazidas pelo Acordo de 1990, as quais, certamente, não nos farão muito preocupados em segui-las.

“Gostaria de saber se a palavra fenômeno pode ser escrita destas duas formas: fenómeno - fenômeno, pois a rede globo [sic] está vinculando estas duas escritas e meus alunos me perguntaram sobre isso e não soube responder.”

Olá, ***. Consoante o texto do Acordo Ortográfico de 1990, com o ventilado escopo de unificação ortográfica, a grafia fenómeno, típica de Portugal, também poderá ser escrita por nós, brasileiros. No Brasil, por se pronunciarem as palavras afins com timbre fechado, será, no entanto, bastante estranho grafarmos os brasileiros fenómeno, pénis, fémur, ónix, António etc., como fazem os portugueses. A regra da dupla grafia dá-se, geralmente, com as paroxítonas e com as proparoxítonas que têm sílaba tônica (tónica, outro exemplo) cuja vogal, em fim de sílaba, se encosta ao m ou n, consonantais, da sílaba seguinte. Nas pronúncias cultas, é comum ocorrer às palavras que satisfazem ao caso a oscilação de timbre da vogal tônica; a dupla grafia veio para agradar a gregos e troianos.

Outro caso interessante de dupla grafia, agora permitida pelo Acordo, é o dos verbos homônimos (ou homónimos) em duas flexões: na terceira pessoa do plural do presente do indicativo e na mesma pessoa e número do pretérito perfeito do indicativo. De havia muito, já me tinha acostumado com o modo estranho, e não menos interessante, como meu pai fala verbos como tratamos, jogamos, cantamos e quejandos; quando no pret. perfeito do indicativo, ele assim os pronuncia: [tra'támUS], [jo'gámUS], [cã'támUS] etc. Isso, na realidade, reflete o momento em que meu pai se alfabetizou, quando o nosso português ainda estava muito ruim das pernas, bastante preso aos ditames lusitanos. Pronunciar tais palavras com o a aberto é prática tão comum em Portugal, que lá se permite o acento agudo em tratámos, jogámos, cantámos etc., para que ocorra a distinção destas formas com as do presente do indicativo. Com a chegada do Acordo, a dupla grafia entrou a imperar. No entanto, isso pouco influirá, acredito, no modo como escreve o brasileiro. Isso é certo somente se o espírito de colonialismo linguístico, tão comum entre os que vivem neste país, não for mais forte; os modismos começam a tomar forma quando pequenas, e igualmente bobas, novidades de fora se implantam em terras tupiniquins. Os pobres falantes frandunos, geralmente os topetudos de classe alta, são os principais alvos de ataques de subserviência aos modos estrangeiros. Ora, eles todos são grandinhos e vacinados! Sabem muito bem escolher como falar. Não dizem snob (pedante), gare (estação ferroviária), barman (preparador de bebidas em bar), box (caixa), dancing (danceteria), fashion (moda), hobby (passatempo) etc. apenas porque assim leem em uma ou outra revista suspeitas. Fazem-no, em verdade, por puro espírito colonialista e por forte desprezo pelo que, culturalmente, se produz no Brasil. Para o caso dos empréstimos rigorosamente necessários, sugiro que sempre se faça o bom aportuguesamento; não nos custa escrever leiaute, xópin, xampu, estresse etc. Para o caso das palavras cujo aportuguesamento não cai bem, devem-se escrever conforme a antiga regra das aspas ou do grifo (itálico).

Bom, espero que haja mais consciência no modo como se escreve e fala.

Um abraço. Até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.