sábado, 27 de dezembro de 2008

Gramática: regência e significação.

Há exatos dois meses, no fórum Só Português (anteriormente chamado SOLP), foi perguntado a mim se haveria alguma regra prática para indentificar se um verbo é intransitivo ou transitivo (direto, indireto ou direto e indireto). É muito comum que se pergunte isso, visto que, infelizmente, algumas gramáticas brasileiras não realizam eficientemente uma relação clara entre a regência de um verbo e sua significação. Trato de um esclarecimento maior dessa dependência; o que há nas gramáticas (com a necessária ressalva de duas ou três notáveis gramáticas) é tão-só uma lista expositiva de regências e de acepções. Esse pragmatismo impede, muitas vezes, o entendimento da flexibilidade da regência verbal quanto ao contexto em que se insere, induzindo o estudante que tão-só consumiu essa lista a equívocos. Segue, então, o tópico em que aparece a pergunta do forista:

"Existe uma regra pré-fixada [sic] para identificarmos quando o verbo é intransitivo?"

Olá, ***. Não existe regra que nos ajude a concluir se, fora da oração, certo verbo é ou não intransitivo. Todo verbo pode aparecer como intransitivo em uma oração. Quando nos deparamos com frase oracional, podemos identificar se um verbo é ou não intransitivo ao procurarmos por seus possíveis complementos. Atenta no seguinte texto:

Por não gostar de mamões, Joaquim comprou uma penca de bananas; em casa, não olhou sequer para ela, acabou-se esquecendo de comê-la. O olvido fora embora, entretanto, quando a fome apertou. O menino, então, lembrou-se das frutas, mas, quando as buscou, viu-as podres, escuras e malcheirosas. Apertou uma delas e notou quão mole estava. Corajosamente, gostou-a, fechando a cara por conta do forte amargor. Sua mãe, em dura reprimenda, disse-lhe que ele não mais compraria. A mulher passou, então, a comprar as frutas que o menino lhe pedia e a alertá-lo para que ele comesse.

Notemos, inicialmente, que ocorre, no texto acima, a repetição de alguns verbos (gostar, comprar, comer, apertar etc.). Repeti-os com o intuito de trabalhar as regências de cada um deles. Em "por não gostar de mamões", percebemos que a ação do verbo gostar transita de Joaquim aos mamões através da preposição de. Na outra aparição desse verbo, a transitividade é direta, sem a presença de preposição, pois, nesse caso, a acepção do verbo é a de provar, experimentar pelo paladar. Outro verbo que apresenta, no texto, regências distintas é apertar. Nota que, em "quando a fome apertou", o verbo é intransitivo, ou seja, a ação verbal está contida, não transita e, portanto, não apresenta complementos. Em outra ocasião, na oração "Apertou uma delas e notou quão mole estava", esse verbo aparece como transitivo direto. No texto, o mesmo ocorre com os verbos comprar e comer, o que evidencia a minha afirmação primeira de que todo verbo pode limitar sua transitividade, ou seja, pode aparecer como intransitivo. A partir do texto, podemos também concluir que a regência de dado verbo depende de sua acepção. Posso citar o verbo assistir como exemplo dessa última afirmação, o qual, no sentido de prestar assistência, é transitivo direto e, nas acepções de presenciar, acompanhar visualmente, e de caber, competir, é transitivo indireto. Gostaria de esclarecer ainda que, no caso do verbo comer em sua última aparição no texto, apesar de haver um complemento no campo das idéias ou subentendido (frutas), a transitividade só é revelada pela presença ou não de complemento escrito, o que o faz, portanto, intransitivo.

Isso é tudo o que, por ora, tenho a te dizer sobre o assunto, ***. Um abraço, e até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.