domingo, 17 de fevereiro de 2008

Poesia: Plenilúnio

Fonte da fotografia: apolo11.com

Plenilúnio

Eis tão belo brilho que é os amores que não tive
e que estão aprisionados naquela imensidão que me espia.
A luz que clareia a madrugada auspiciosa são as farsas, as forças,
as farpas cravadas no peito do que se apaixona pela
mulher que nunca será como a lua...

Posto que a majestosa luz é mentira que, eterna,
nunca é revelada, resta-me a mulher parca,
o menoscabo da mentira lunar, que, forte, maltrata
o lunático sem máculas, sem as dores do mundo.

Reside nos amores terrestres a face sob as faces,
que não ilude o devoto da lua, que todas caem.
O proselitismo da verdade restrita ao plenilúnio
ameaça a mentira amigável da mulher de boca pequena
e olhar grande, penetrante, mas mudo...

A mudez atormenta o prosélito dessa religião ilibada,
que presto põe-se, com torpor, a ler o rosto sincero
inscrito no contorno lunar que o faz esquecer
a mentira terrena e a verdade, a única que há...

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Poesia: Amor Platônico

Robson Andrade Miranda

Amor Platônico

Aparição da Face de Afrodite de Cnido, por Salvador Dali.

Aparição da Face de Afrodite de Cnido, por Salvador Dali.

Numa pálida noite de solidão
O escuro lânguido chora,
O calor desespera a carne
Que apodrece diante de tal
A tristeza é fiel companheira
Da paixão não correspondida
Que sucumbe no peito
Amor platônico que cresce
Diminuindo meu viver

Pensamentos sem escrúpulos
Desvirginizam minha timidez
Penetrando nas entranhas de teus sonhos
Que são meus sonhos
Minhas utopias alcançáveis
Paradoxo corajoso
Diante de tanto sofrimento
Amor platônico que cresce
Diminuindo meu viver

Lábios são beijados sem nenhum sabor
Ouço tua voz em instantes de pensar vago
Que se congestiona com tal suavidade
Teu cheiro não me deixa sentir o meu perfume
Seria ruim se não fosse você
Será bom continuar assim
Sadomazoquista ferrenho
Amor platônico que cresce
Diminuindo meu viver.

Comentário: Cá está uma das poesias de meu amigo Robson, o qual me sugeriu a sua publicação dela. Esta é a primeira das suas que me revelou o seu versilibrismo. Conheço bem a habilidade que possui de compor rimas, e ele trouxe-me, então, esta, que é tema do amor não correspondido, cingido por lascivo fevor, e não está presa, posto que não é prisão quando a faz, à cor dos versos. Robson, a minha saudação é expressa, e quero que saibas que publicarei outras poesias tuas caso queiras.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Poesia: O Minuto Leveiro da Chuva.

A chuva que torna o meu sono difícil
chove águas escuras em que suspensos vêm os pesadelos.
São águas pesadas e fadadas ao fracasso da queda,
(do choque, da dor e deste minuto leveiro.
A água que nos alimenta, que no filtro de barro esfria,
não revela sequer o escopo daqueloutra, a infernal água pluvial.
Antes fosse tão-só barulho que se revela da chuva,
e não toda essa impaciência calma das horas que mereceriam
a chegada presta e heróica do sono.

Tão distintos são os ventos frios, muito frios,
que devassam o meu quarto através dos combogós de minha janela.
Trazem palavras, ora tristes, ora aguerridas,
(da chuva que continua a cair e escorrer pelas calçadas.
Os assovios longos que prenunciam mais água e talvez relâmpagos
são o terror dos pobres cães que, uivantes, tentam macerar
(a melodia, ululando cada vez mais alto, mais forte e mais triste.
Fosse eu as nuvens e teria de chorar todo o terror
que me é represado nestes tristes versos pluviais...

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

Artigo: Teadoro, Teodora

Pasquale Cipro Neto

Em 1947, o grande Manuel Bandeira publicou o antológico poema Neologismo, uma de suas tantas obras-primas. Ei-lo:

 

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Permita-me perguntar-lhe, caro leitor, com todo o respeito do mundo: você entendeu o poema? Captou o âmago da mensagem? Entendeu, por exemplo, por que o verbo teadorar foi grafado numa palavra só? E entendeu por que o poeta diz que esse verbo é intransitivo?
Vamos conversar um pouco sobre isso? Vamos lá. Na escola, muitas vezes se diz que verbo transitivo é "aquele que precisa de complemento" e que verbo intransitivo é "aquele que não precisa de complemento". Em seguida, é comum que venham listas e listas de verbos e suas respectivas classificações: o verbo X é isto, o verbo Y é aquilo etc.

Não é bem assim que a coisa deveria funcionar. Seria bom ver os verbos na frase, no texto, no contexto. Em "Gostei do vinho", por exemplo, o verbo gostar é transitivo indireto e significa julgar bom, mas em "Gostei o vinho" o verbo é transitivo direto e significa provar, experimentar. A última construção não é comum na língua de hoje, mas aparece com alguma freqüência nos textos clássicos. Fora de contexto, nenhum verbo é coisa alguma.

A esta altura, talvez seja interessante começar pelo começo (com perdão pela redundância), ou seja, por explicar por que o verbo transitivo se chama transitivo e por que o intransitivo se chama intransitivo. Que tal lembrar que as palavras transitivo, transitar, trânsito, transitório, entre outras, são cognatas, isto é, têm raiz comum? Por trás de toda essa família está o verbo latino transire, cujo significado é ir além de.

Se João adora Maria, por exemplo, a adoração de João passa, ou seja, transita, sai dele, e tem Maria por alvo, ou seja, por objeto. Diz-se, então, que em "João adora Maria" o verbo adorar é transitivo e, conseqüentemente, Maria é o alvo, o objeto dessa adoração. Não é à toa que, nesse caso, Maria funciona sintaticamente como objeto (direto, nessa situação). Em outras palavras, Maria é o complemento, o fim do percurso da adoração (que sai de João e transita até Maria).

Em "João dorme muito", o ato de João (dormir) não transita, não sai dele, não tem ninguém ou nada por objeto, por alvo. Diz-se, então, que em "João dorme muito" o verbo dormir é intransitivo.

Ao criar a palavra teadorar, nosso grande poeta incluiu nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é intransitivo porque já contém seu suposto objeto (que é o te). Fantástico, não? Não é para ter orgulho de um poeta dessa grandiosidade?

Pois bem, por que no parágrafo anterior eu disse "uma das razões da intransitividade"? Porque outra razão talvez seja o fato de que, sendo intransitiva, a adoração não alcança o alvo, fica presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser adorado. Não custa lembrar que, no começo do poema ("Beijo pouco, falo menos ainda"), o próprio poeta dá uma pista claríssima dessa intransitividade de seus sentimentos.

Até domingo. Um forte abraço.

(fonte: Jornal O Globo, da coluna semanal do Prof. Pasquale Cipro Neto, em 6 de março de 2005)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.