sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Crônica: O copo inglês cheio d'água.

O copo inglês cheio d'água

Gustavo Henrique S. A. Luna

     Eis a noite parda, a inquietude cinza da madrugada; a aurora tarda a surgir triunfante, enquanto cá fico a admirar o volume límpido contido em copo inglês. Que posso eu diante de tanta tranqüilidade, o mais cruel dos oximoros? A noite não me permite o sono, apesar de toda a quietude. Na cama, modelando figuras ideais no forro do quarto, sentia sede, sim, demasiada sede. Levantei-me, então, decidido a encarar a madrugada, fruir de toda a paz que me é concedida pelo silêncio das horas dos cães ululantes, que, como os homens, também devem sofrer de mal congênere aos que tanto atormentam a humanidade. Na rua deserta, aquele canino inquieto, latindo em direção ao nada, é o reflexo do homem contemporâneo, que teme a tudo antes de conhecer o inimigo e é insatisfeito por natureza; as insatisfações dos dois são torpes e idênticas, o incômodo de não ter o que não pode ser possuído torna-os cegos; latem, pois, ao nada, que é o reflexo do que são ou do que, inutilmente, desejam ser. O breu da sala instiga-me, então, lembrando-me do cão, a imaginar quão triste é a escuridão e quão ricos somos por desfrutarmos de luz, que logo a deixo insurgir-se com descomunal ferocidade através de um estalo, em minha mente e no interruptor. A luz veio-me como indicativo de que sinto sede, idêntica à que me pôs de pé e induziu-me à trajetória do quarto à cozinha, mas muito mais reveladora, sede especial, que é o verdadeiro indício de quanto está em minhas mãos, que são apenas duas, enquanto há milhares espalmadas no chão, ajudando seus corpos desprovidos de forças a se reerguerem, porem-se de pé para, enfim, enxergarem tudo o que está, de fato, diante dos olhos, ou, para muitos, acima da cabeça. Tomo o copo que primeiro me aparece, um tipo inglês, dos que são enchidos de cachaça nos mais recônditos bares da cidade; noto, porém, que nunca houvera semelhante copo em casa, o que não me encorajou a perguntar a ninguém a origem de tal objeto, visto que, em tal horário, todos dormem e só eu teimo em enfrentar a madrugada. Cai presto a água, e o copo inglês vai, sutilmente, deixando-se preencher pelo líquido, que, em tal instante, é o sinal de que ainda sinto sede. Jaz quieto, então, o copo na mesa, e eu já não sei, de fato, o que me leva fitá-lo com tanta insistência. Que é de minha sede? Ainda a sinto, mas não consigo principiar atitude de consumir toda aquela água. Não sei se realmente merece ser bebida por mim; seria de todo significante se pudesse abeberar aos outros que dormem saciados de esperança nas praças, calçadas etc; que as mãos, então, os sustentem, visto que somos, todos os que têm duas, e somente duas, mãos vastas, os responsáveis, indiretamente, por todos os flagelos de história secular. A luz, tendo-me atingido severamente os olhos cansados de toda a neurastenia egoísta, foi, para mim, a explicação em voz maternal que me atingiu docemente as têmporas e penetrou-me os ouvidos, livrando-me do limbo cruel que não me permitia atentar nas mais simples posses, que são deveras verdadeiros abismos que me separam dos que sofrem o castigo programado, a dor plantada no peito que ainda bate em sons destoantes, mas muito mais sinceros que os produzidos pelos corações fajutos dos verdadeiros criminosos: os neurastênicos cujo maior conflito existencial é a escolha de um novo aparelho celular.
     Horas antes da água que continuo a fitar, houve, em meu bairro, comício, muito barulho, gritos e enganosa exaltação. Muitos dos que lá estavam desfiguravam, sem atentar na atitude nefasta, o símbolo do líder, que, para eles, naquele momento, seria o ser verdadeiramente polido, sem máculas, e comprometido com o povo. A liderança, infelizmente, ganhou matizes obscuros através de discurso fervoroso; alguns, que não queriam gritos, perceberam a proporção da algazarra e partiram, outros, cujos olhos brilhavam esperançosos, mas pouco observadores, permaneciam a assistir ao candidato de voz bravia. Havia lá muitas mãos, que aplaudiam sem sequer nunca ter entrado em contato com as outras, sujas, espalmadas no chão; a indiferença que lhes é própria está no mutismo e na cegueira, posto que os pés que forte pisam o chão sejam indício de que pisar é realmente o seu forte. A paisagem, para os pseudo-românticos do séc. XXI, é ideal, olvidada de todas as chagas sociais e erigida consoante progresso mendaz, em que progredir é promover o crescente somatório de concreto nas paredes, que, pelo que eu saiba, não alimenta as bocas mudas, senão contribui com a distorção; o abismo torna a crescer.
     Creio ser sempre necessário, nas mesas de todos os citadinos, um copo inglês cheio d'água. Que a luz atinja-lhes as têmporas e livre-os do limbo que promove o abismo. Quando torno a encarar o copo parco, ele parece debochar de minha falta de atitude; quão difícil é consumi-lo de todo, em movimento presto e brusco, como se sofresse de susto tão-somente incoativo. A catarse paralisa-me, o torpor toma-me como a um viciado, sem, entretanto, livrar-me do pensamento: as mãos calejadas, pequenas, abertas, escorando-se, gritantes, sujas, espalmadas no chão... Subitamente, bato o joelho no suporte da mesa, e então o copo se abala, a circunferência da base entra a girar em movimento hipnótico, periódico e pertubador; a ameaça a toda aquela perfeição líquida se fez rápida e deixou-me extremamente apreensivo. Não poderia toda a revelação esvair-se tão brusca e fortemente como uma explosão. Girou, girou e girou, mas não tombou; a água, entretanto, permaneceu em movimento aguerrido. Veio a conclusão pungente e viperina de que o copo com água é o conjunto mais frágil do mundo, o que me exigiu uma digestão lenta, repleta de decepção e de tristeza tirana. O apaziguar do pensamento e os olhos úmidos agora permitiam-me sentir a dor no joelho, que, para mim, foi a mais saborosa dor de que já provei, visto que a soube medir com precisão; ela, de fato, não era uma dor, senão o alerta de que melhorei das cismas provocadas por um copo inglês cheio d'água. Pude, enfim, respirar profundamente e ter preciso norte. A seriedade de todo o susto revelado pelas mãos que desejam mais o copo do que eu foi logo preenchida por risos sonantes, de contentamento plácido e sopitado. Tomei rápido o copo nas mãos e bebi-o com a mais feroz velocidade, para finalmente notar que eu não estava com sede... Marcara o encontro com o copo inglês cheio d'água, mas desde o quarto não sentira sequer um pingo de sede. Essa experiência e a apreensão de todo o valor contido em pouco objeto cristalizaram-se em minha mente, uma ferida escusa fora sanada de todo e revelara-me quão grandes são as minhas mãos, que são duas, e somente duas. Levantei-me da cadeira em que estava, agora produto de catarse, que me removeu máculas fortes, e dirigi-me à parede que contém o interruptor, sem saber, contudo, se seria realmente o cessar da luz o que viria após o estalo. O estalo veio, mas a luz não se apagou... A aurora não mais se mostraria tão triunfante, visto que, em mente vítima de um copo inglês cheio d'água, a idéia de que ela se mostraria assim não seria válida para todos. O sono, então, chegou, e fui ao quarto para dormir com a certeza de que há muitas mãos espalmadas no chão e de que possuo duas, e somente duas.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

5 comentários:

  1. Muito boa noite, amigo de longe. Venho, uma vez mais, deixar meu recordo aqui.

    Algo teu estilo me recorda, mas não sei bem quê. Conto-te que eu escrevo e estudo de madrugada: é o momento do dia em que tenho a mente mais criativa.

    Na melhor das intenções, sugiro-te períodos mais curtos. Cuidado também com o eco: "O breu da sala instiga-me, então, lembrando do cão, a imaginar quão triste é a escuridão e quão ricos somos por desfrutarmos de luz, que logo a deixo insurgir-se com descomunal ferocidade através de um estalo, em minha mente e no interruptor."

    Deixo aqui uma daquelas dúvida que prometera: o verbo "lembrar" não deveria acompanhar pronome no trecho que destaquei?

    Abraço.

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  2. A prosa é, intencionalmente, poética; quis, portanto, valer-me de passagens em que há rima (o eco cacofônico permanece proibido em textos mais sérios).

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  3. Não fizera revisão mais aguda do texto; fi-lo rápido e, despreocupadamente, postei-o sem que fosse fenotexto digno do título. Revisá-lo-ei em outro dia. Obrigado, Giorgio, pela admoestação.

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  4. Sim, Giorgio. O verbo deveria, realmente, vir acompanhado do pronome me. Obrigado.

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.