O copo inglês cheio d'água
Gustavo Henrique S. A. Luna
Eis a noite parda, a inquietude cinza da madrugada; a aurora tarda a surgir triunfante, enquanto cá fico a admirar o volume límpido contido em copo inglês. Que posso eu diante de tanta tranqüilidade, o mais cruel dos oximoros? A noite não me permite o sono, apesar de toda a quietude. Na cama, modelando figuras ideais no forro do quarto, sentia sede, sim, demasiada sede. Levantei-me, então, decidido a encarar a madrugada, fruir de toda a paz que me é concedida pelo silêncio das horas dos cães ululantes, que, como os homens, também devem sofrer de mal congênere aos que tanto atormentam a humanidade. Na rua deserta, aquele canino inquieto, latindo em direção ao nada, é o reflexo do homem contemporâneo, que teme a tudo antes de conhecer o inimigo e é insatisfeito por natureza; as insatisfações dos dois são torpes e idênticas, o incômodo de não ter o que não pode ser possuído torna-os cegos; latem, pois, ao nada, que é o reflexo do que são ou do que, inutilmente, desejam ser. O breu da sala instiga-me, então, lembrando-me do cão, a imaginar quão triste é a escuridão e quão ricos somos por desfrutarmos de luz, que logo a deixo insurgir-se com descomunal ferocidade através de um estalo, em minha mente e no interruptor. A luz veio-me como indicativo de que sinto sede, idêntica à que me pôs de pé e induziu-me à trajetória do quarto à cozinha, mas muito mais reveladora, sede especial, que é o verdadeiro indício de quanto está em minhas mãos, que são apenas duas, enquanto há milhares espalmadas no chão, ajudando seus corpos desprovidos de forças a se reerguerem, porem-se de pé para, enfim, enxergarem tudo o que está, de fato, diante dos olhos, ou, para muitos, acima da cabeça. Tomo o copo que primeiro me aparece, um tipo inglês, dos que são enchidos de cachaça nos mais recônditos bares da cidade; noto, porém, que nunca houvera semelhante copo em casa, o que não me encorajou a perguntar a ninguém a origem de tal objeto, visto que, em tal horário, todos dormem e só eu teimo em enfrentar a madrugada. Cai presto a água, e o copo inglês vai, sutilmente, deixando-se preencher pelo líquido, que, em tal instante, é o sinal de que ainda sinto sede. Jaz quieto, então, o copo na mesa, e eu já não sei, de fato, o que me leva fitá-lo com tanta insistência. Que é de minha sede? Ainda a sinto, mas não consigo principiar atitude de consumir toda aquela água. Não sei se realmente merece ser bebida por mim; seria de todo significante se pudesse abeberar aos outros que dormem saciados de esperança nas praças, calçadas etc; que as mãos, então, os sustentem, visto que somos, todos os que têm duas, e somente duas, mãos vastas, os responsáveis, indiretamente, por todos os flagelos de história secular. A luz, tendo-me atingido severamente os olhos cansados de toda a neurastenia egoísta, foi, para mim, a explicação em voz maternal que me atingiu docemente as têmporas e penetrou-me os ouvidos, livrando-me do limbo cruel que não me permitia atentar nas mais simples posses, que são deveras verdadeiros abismos que me separam dos que sofrem o castigo programado, a dor plantada no peito que ainda bate em sons destoantes, mas muito mais sinceros que os produzidos pelos corações fajutos dos verdadeiros criminosos: os neurastênicos cujo maior conflito existencial é a escolha de um novo aparelho celular.
Horas antes da água que continuo a fitar, houve, em meu bairro, comício, muito barulho, gritos e enganosa exaltação. Muitos dos que lá estavam desfiguravam, sem atentar na atitude nefasta, o símbolo do líder, que, para eles, naquele momento, seria o ser verdadeiramente polido, sem máculas, e comprometido com o povo. A liderança, infelizmente, ganhou matizes obscuros através de discurso fervoroso; alguns, que não queriam gritos, perceberam a proporção da algazarra e partiram, outros, cujos olhos brilhavam esperançosos, mas pouco observadores, permaneciam a assistir ao candidato de voz bravia. Havia lá muitas mãos, que aplaudiam sem sequer nunca ter entrado em contato com as outras, sujas, espalmadas no chão; a indiferença que lhes é própria está no mutismo e na cegueira, posto que os pés que forte pisam o chão sejam indício de que pisar é realmente o seu forte. A paisagem, para os pseudo-românticos do séc. XXI, é ideal, olvidada de todas as chagas sociais e erigida consoante progresso mendaz, em que progredir é promover o crescente somatório de concreto nas paredes, que, pelo que eu saiba, não alimenta as bocas mudas, senão contribui com a distorção; o abismo torna a crescer.
Creio ser sempre necessário, nas mesas de todos os citadinos, um copo inglês cheio d'água. Que a luz atinja-lhes as têmporas e livre-os do limbo que promove o abismo. Quando torno a encarar o copo parco, ele parece debochar de minha falta de atitude; quão difícil é consumi-lo de todo, em movimento presto e brusco, como se sofresse de susto tão-somente incoativo. A catarse paralisa-me, o torpor toma-me como a um viciado, sem, entretanto, livrar-me do pensamento: as mãos calejadas, pequenas, abertas, escorando-se, gritantes, sujas, espalmadas no chão... Subitamente, bato o joelho no suporte da mesa, e então o copo se abala, a circunferência da base entra a girar em movimento hipnótico, periódico e pertubador; a ameaça a toda aquela perfeição líquida se fez rápida e deixou-me extremamente apreensivo. Não poderia toda a revelação esvair-se tão brusca e fortemente como uma explosão. Girou, girou e girou, mas não tombou; a água, entretanto, permaneceu em movimento aguerrido. Veio a conclusão pungente e viperina de que o copo com água é o conjunto mais frágil do mundo, o que me exigiu uma digestão lenta, repleta de decepção e de tristeza tirana. O apaziguar do pensamento e os olhos úmidos agora permitiam-me sentir a dor no joelho, que, para mim, foi a mais saborosa dor de que já provei, visto que a soube medir com precisão; ela, de fato, não era uma dor, senão o alerta de que melhorei das cismas provocadas por um copo inglês cheio d'água. Pude, enfim, respirar profundamente e ter preciso norte. A seriedade de todo o susto revelado pelas mãos que desejam mais o copo do que eu foi logo preenchida por risos sonantes, de contentamento plácido e sopitado. Tomei rápido o copo nas mãos e bebi-o com a mais feroz velocidade, para finalmente notar que eu não estava com sede... Marcara o encontro com o copo inglês cheio d'água, mas desde o quarto não sentira sequer um pingo de sede. Essa experiência e a apreensão de todo o valor contido em pouco objeto cristalizaram-se em minha mente, uma ferida escusa fora sanada de todo e revelara-me quão grandes são as minhas mãos, que são duas, e somente duas. Levantei-me da cadeira em que estava, agora produto de catarse, que me removeu máculas fortes, e dirigi-me à parede que contém o interruptor, sem saber, contudo, se seria realmente o cessar da luz o que viria após o estalo. O estalo veio, mas a luz não se apagou... A aurora não mais se mostraria tão triunfante, visto que, em mente vítima de um copo inglês cheio d'água, a idéia de que ela se mostraria assim não seria válida para todos. O sono, então, chegou, e fui ao quarto para dormir com a certeza de que há muitas mãos espalmadas no chão e de que possuo duas, e somente duas.
(por Gustavo Henrique S. A. Luna)
Muito boa noite, amigo de longe. Venho, uma vez mais, deixar meu recordo aqui.
ResponderExcluirAlgo teu estilo me recorda, mas não sei bem quê. Conto-te que eu escrevo e estudo de madrugada: é o momento do dia em que tenho a mente mais criativa.
Na melhor das intenções, sugiro-te períodos mais curtos. Cuidado também com o eco: "O breu da sala instiga-me, então, lembrando do cão, a imaginar quão triste é a escuridão e quão ricos somos por desfrutarmos de luz, que logo a deixo insurgir-se com descomunal ferocidade através de um estalo, em minha mente e no interruptor."
Deixo aqui uma daquelas dúvida que prometera: o verbo "lembrar" não deveria acompanhar pronome no trecho que destaquei?
Abraço.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA prosa é, intencionalmente, poética; quis, portanto, valer-me de passagens em que há rima (o eco cacofônico permanece proibido em textos mais sérios).
ResponderExcluirNão fizera revisão mais aguda do texto; fi-lo rápido e, despreocupadamente, postei-o sem que fosse fenotexto digno do título. Revisá-lo-ei em outro dia. Obrigado, Giorgio, pela admoestação.
ResponderExcluirSim, Giorgio. O verbo deveria, realmente, vir acompanhado do pronome me. Obrigado.
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