segunda-feira, 7 de abril de 2008

Crônica: Sou um pé. E você quem é?

    Em minha denotação, não sou alvo de atenção alguma. Tenho como fiel companhia os sapatos surrados de meu dono, que por desleixo já me deixou entregue a micoses terríveis. Em momentos de lazer, encontro o azulejo frio do terraço da propriedade do que me guia (ou será eu quem o guio?) e lá entro a pensar sobre o nome que me deram: penso muito sobre quão útil sou e quão útil é o meu nome, visto que esse momento é o único em que não transporto o meu dono; ele senta-se em uma vasta poltrona e espalha-me sobre o chão. Não me gabo por suportar o peso e até as mágoas do homem hodierno, senão o faço por conta do nome que me dão: uma palavra tão poderosa, cheia de significados, um termo que vai muito além do que posso imaginar.

    Ferretearam-me, desde que me entendo por pé, a minha definição primeira, o verbete contido nos bons dicionários; sim, sou uma mera estrutura anatômica, mas o meu nome, não. Ele pode ser um dos produtos mais emblemáticos da criatividade de um povo que sabe cuidar bem de sua língua, conferindo-lhe o mais puro teor vernáculo. O Brasil, terra que piso com gosto, e seus bons falantes, aos quais adquiri profunda admiração, revelaram-me a riqueza que constitui o idioma que falam, um ouro resultante da mistura de termos indígenas, africanos, lusitanos e de tantas outras origens, que tão-só valem ao preencher uma lacuna de nosso léxico, fato raro devido à diversidade lingüística que o erige.

    Mas voltemos ao meu nome (empolgo-me quando trato da língua dos homens)! Ele é alvo constante da bendita catacrese, que é condenada por muitos gramatiqueiros que seguem o Beletrismo e afirmam-na como metáfora desgastada, sem muita criatividade. Ora! Muito deles condenam o uso de tal recurso baseados no fato de que o vício reside na impropriedade etimológica e valem-se desses casos pouco importantes, em que o étimo da palavra é realmente corrompido, para rechaçar o recurso real das palavras presente na boa e criativa catacrese. As palavras "terraço" e "azulejo", presentes no início deste texto, já foram até crucificadas por esses maus cultivadores da língua, que as julgaram tão-só presas ao substantivo "terra" e ao adjetivo "azul", respectivamente; assim revelam desconhecer os seus étimos verdadeiros, residentes no francês (terrasse) e no árabe (zuleij). Então, é melhor que não me venham esses mal letrados condenar o nome que tenho e de que tanto me orgulho. Dos pés que chutam aos pés de laranja, pitomba, abacate, etc., sou, junto ao meu nome, cheio de riquezas.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

Um comentário:

  1. POR FAVOR ONDE ENCONTRO?

    "Tem aquela historinha do cartorário que escreveu a respeito de um erro e
    tentando consertá-lo: "...

    SERGIO

    sergioluisr@hotmail.com

    ResponderExcluir

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.