segunda-feira, 21 de abril de 2008

Crônica: O fulano-de-tal que fora adotado.

   Assim pensou o fulano-de-tal, semelhante a muitos que crêem viver uma situação de equilíbrio familiar, e o registro por ele escrito é conturbado, visto que ele mesmo, em um momento, tem em si o turbilhão de pseudoconclusões e, em outro, apresenta forte atimia. A avaliação do que lhe sucedeu é feita pela corda trêmula em que se equilibram acrobatas destemidos: o Amor atrabiliário e a Razão tácita. Ela, a corda, é feita de material rijo, que sustenta as estripulias desses dois. Assim nos conta, presto, o fulano-de-tal.

    Eis uma retrospectiva de meus vinte e seis anos, tudo o que me apareceu brusco na memória após a descoberta da adoção: tive boa infância, bons amigos, boa educação e o restante do que não falta à família perfeita; uma perfeição cristalina que, porém, trincou por efeito de uma ressonância que me remete ao momento de meu tão belo rebentar, um tipo não convencional de introdução ao mundo. Preferiria crer eternamente nesse cristal imaculado, produto do medo de meus pais, mas ele, diferente dos demais, era uma pedra frágil, que teria de trincar e, de uma só vez, partir-se em milhares de pedaços, tal foi a força da notícia que me arrebatou tão-só agora, quando estava feliz por assim viver.

    Mas a notícia cruel de minha adoção renderá o final da escrita, agora é melhor tomar por base os motivos da informação tardia; o medo, sim, gerou a morosidade de meu caso e emudeceu, por todos os bons momentos que vivi, qualquer vestígio de atitude reveladora por parte dos que me mostraram o mundo. O que me pareceu límpido e majestoso pode ter sido a angústia dos que me criaram; eles, ao menos, nunca ma demonstraram. Não sei bem se cabe a mim o julgamento da "falha", pois não sei bem se a há e se ela feriria mais um adulto de boa formação ou uma criança que decerto assimilaria que a família não é uma instituição armada pela consangüinidade. Tenho em mente que não há uma fórmula para o sucesso, assim como não há uma para a felicidade, e não haveria, portanto, razão maior para o tipo especial de cisma de que tenho sofrido do que a minha progressão natural, sem choques e sem dramas. O alvo da discussão já não é o menino de ouro que fui, senão um adulto que, por meses, tem-se mostrado taciturno e conversado pouco com a tão prestativa família. Ah! Linhas que se riscam, é a minha vez de fingir! Fazer os meus mestres, que tão bem me conhecem, não notarem sequer o menor ruído de minha digestão, uma feijoada pesada que agora tem de ser degradada à surdina. Talvez seja mais difícil para mim fingir o mastigar do abalo, da nova idéia e de um pouco de desespero.

    Como toda digestão, a nutrição é certa. O resultado da força que me feriu a consciência com descomunal ferocidade, as palavras que saíram fortes e reveladoras da pequena e bem pintada boca maternal e toda a situação que daí decorreu foram a minha atual anestesia. O meu moral inquieto e preocupado com a reação de minha família por eu assim agir, meio inerte e um pouco inerme às vicissitudes, mostrou-me uma rica digestão, uma digestão de valores, modelos, fórmulas e paradigmas que me confirmou que a família não é uma instituição armada pela consangüinidade.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.