domingo, 23 de março de 2008

Gramática: os erros da citação.

Certa vez, postou-se, no fórum SOLP, um tópico que trazia uma citação que continha algumas transgressões gramaticais. Um caro forista, por sinal, muito atuante no fórum, pedia que se reconhecessem os erros da citação, que foi transcrita abaixo junto às perguntas do autor do tópico.

 

"Paulo diz a Rodrigo:
'O show foi assistido por diversas pessoas, dentre as quais Mário e Felipe. Como você bem sabe, aproveitei pois, para cumprimentar-lhes. Mário, infelizmente, preferiu manter-se à distância que ouvir-me com atenção'".

Contabilizei seis desvios. Tentem encontrá-los e corrigi-los, expondo, claro, as respectivas justificativas lógicas.

Como não podia deixar de ser, também deixo uma dúvida:

Usei as aspas corretamente aqui: atenção'". ?

A minha resposta:

Olá, ***. Encontrei os cinco erros descritos abaixo; são eles os mesmos que contabilizaste?

1.º - Há, no segundo período, erro de pontuação, porque a palavra pois deveria aparecer entre vírgulas; trata-se de uma conjunção que somente será classificada como coordenativa conclusiva quando vier deslocada (logo após o verbo). Não ocorrendo o deslocamento, classificar-se-á como conjunção coordenativa explicativa. Ex.: Choveu muito; trataram, pois, de cuidar do cultivo de mandioca (conj. conclusiva); "Todo homem morre, pois ninguém é imortal" (conj. explicativa).

2.º - Ainda no segundo período, ocorre mais um erro: empregou-se mal pronome oblíquo. Em vez de lhes, que tão-só funciona como objeto indireto, dever-se-ia empregar o pronome los, que, sendo objetivo direto, estaria de acordo com a regência do verbo cumprimentar, que é transitivo direto.

3.º - No terceiro período, apareceu solecismo regencial bem ventilado: o verbo preferir é transitivo direto e indireto, regendo objeto indireto seguido da preposição a, e nunca que, do que, etc. Outra informação importante acerca do emprego de tal verbo é que não se lhe devem pospor alguns advérbios e locuções adverbiais, tais como mais, mil vezes, muito mais, etc.; são, portanto, incoerentes estas construções: prefiro muito mais cachaça a vodca; prefiro mil vez lutar a ser eterno escravo.

4.º - Ocorreu também, ainda no terceiro período, emprego incorreto de acento grave em "à distância", pois, quando houver tal expressão em sentido indeterminado, o emprego da crase é impróprio; determinando-se, porém, a expressão, o emprego apresenta razão de ocorrer. Ex.: "No zoológico, os animais ficam a distância"; "Os guardas ficaram à distância de cem metros".

5.º - Há, no primeiro período, vício de linguagem: um estrangeirismo. Não haveria problema algum se a palavra show estivesse escrita entre aspas ou em itálico, o que não ocorreu. Por sinal, existem, em nosso léxico, palavras que substituem perfeitamente a palavra inglesa.

O trecho seria assim reescrito: "Paulo diz a Rodrigo:
'O show foi assistido por diversas pessoas, dentre as quais Mário e Felipe. Como você bem sabe, aproveitei, pois, para os cumprimentar. Mário, infelizmente, preferiu manter-se a distância a ouvir-me com atenção'".

***, o trecho que dispuseste neste tópico fez-me lembrar alguns detalhes da sintaxe. A primeira frase proferida por Paulo lembrou-me que, apesar de assistir ser transitivo indireto quando possui acepção de presenciar, esse verbo pode ser construído na voz passiva. Ex.: o filme foi assistido por todos os alunos. Quanto à tua dúvida sobre o emprego seqüencial das aspas simples e duplas (nota que essa concordância está correta, visto que "aspas" pertence à lista pluralia tantum dos substantivos, os que só se empregam no plural), não as empregaste corretamente, pois deverias ter notado que o período já foi iniciado por aspas duplas, o que obriga as últimas aspas duplas a virem após o ponto que encerra o período. As aspas simples devem vir antes do ponto, pois elas indicam uma citação dentro de outra e pertencem, pois, ao período completo. Deverias ter escrito assim: (...)ouvir-me com atenção'.". Caro ***, espero ter contribuído contigo, e sabe que estou demasiado grato com a diversão. Um abraço deste que te escreve, e até outros tópicos.

Perguntou-me depois o caro forista se não haveria deficiência da naturalidade do discurso quando eu assim escrevi: "(...) e sabe que estou demasiado grato (...)". Cá está a transcrição de seu questionamento:

"E sabe que estou demasiado" é um trecho que me causa verdadeira estranheza, ainda que esteja corretíssimo. Isso se deve ao fato de que ele apresenta uma comum oração optativa usada aqui ("E saiba") conjugada na segunda pessoa do singular. Hehe. Enfim, a ti, soa natural?

Resp.: quanto ao meu emprego de "(...) sabe que estou demasiado grato com a diversão", aparenta realmente afetação de quem escreve, mas temi novamente corromper a uniformidade de tratamento.

Em minha resposta, que está no fórum, cometera equívoco ao considerar que, quando houvesse verbo na forma nominal infinitiva, não formando locução verbal e sendo antecedida por preposição, só seria permitida a ocorrência de próclise, o que está deveras errado, pois tanto esta quanto a ênclise são permitidas quando ocorre infinitivo impessoal "solto". Postarei aqui minha retratação, que já fora lida pelos membros do fórum. Cá está ela:

Olá, ***. Responderei inicialmente à questão da colocação pronominal: nota que a preposição para introduz, sozinha, a oração subordinada adverbial final reduzida de infinitivo, pois a locução conjuntiva para que só apareceria se a oração subordinada estivesse desenvolvida. Peço-te que me perdoes por ter classificado essa preposição como conjunção; foi pura desatenção, pois sabe-se que, quando uma oração subordinada estiver reduzida, pode, senão deve, ocorrer elipse da conjunção, geralmente se mantendo apenas a preposição. Ex.: "Abri todas as porteiras para o meu amor passar" (O. Mariano, TVP, II, 638.); "Abri todas as porteiras para que o meu amor passasse" (forma desenvolvida da oração subordinada). Realmente, já li em diversos sítios ser facultativa a ocorrência da próclise ou da ênclise em tal caso, e, por se dizer essa faculdade em boas gramáticas, tomo-a como regra. Torno, portanto, a pedir-te desculpa por meu deslize ao condenar a ênclise, visto que, em sua Gramática da Língua Portuguesa, o nosso saudoso Celso Ferreira da Cunha assim escreveu:


"Com os infinitivos soltos, ainda quando modificados por negação, é lícita a próclise ou a ênclise, embora se verifique uma acentuada tendência para esta última colocação pronominal: 

'Em que, antes de a amar, se pensa, mesmo sem precisar vê-la...?' (C. Meireles, OP, 591.)

'Nem falou a Dondon naquela carta, para não incomodá-la.' (J. L. do Rego, U, 225.)

'O que eu queria era só apertá-la nos meus braços.' (G. Rosa, S, 211.)"

Enfim, a regra vai além da seqüência preposição + verbo no infinitivo, aplicando-se toda vez em que houver infinitivo solto, sem formar locução verbal ou tempo composto. Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, que não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa.

O colega de fórum perguntou-me ainda se haveria licitude em emprego meu de pronome oblíquo átono as em linhas finais de minha resposta acerca da colocação pronominal. Cá está sua pergunta:

 

Gustavo_HSAL escreveu:

Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, que não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa.

É lícito o uso do pronome em negrito? Parece-me que ele entra em choque com o pronome relativo, não?

Resp.: olá, ***. Não há, nesse caso, um pronome relativo, senão uma conjunção coordenativa explicativa, equivalente a pois. Nota a reconstrução: "Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, pois não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa". Outros exemplos: "Levante-se, que já é tarde!"; "Chupa esse picolé. Chupa-o, que é de uva". Um abraço, ***, e até outros tópicos.

Perguntou-me se haveria realmente uma relação de explicação introduzida pela conjunção que. Cá está seu questionamento:

Há uma relação de explicação em "Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, pois não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa."?

Resp.: ***, explico o porquê da necessidade de as regras já bem conhecidas de colocação pronominal serem seguidas sem mais explicações: a intenção minha de não encompridar a mensagem. Um abraço, e até outras mensagens.

3 comentários:

  1. Cara, obrigado pelo link.Já coloquei vc lá no FalaBonito. Gostei muito deste post. Vou voltar depois para ler com mais calma.

    Abraço

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  2. Gustavo, você parece bem jovem, mas está de parabéns, adorei suas explicações, excelente professor da "nossa língua portuguesa".

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  3. Olá, Sonia. Agradeço o comentário e o elogio. O "professor" é que, infelizmente, não me cabe; fica bem nos heróis (desculpe-me o chavão) que enfrentam a sala de aula diariamente e dão o sangue pela Educação, apesar do pouco reconhecimento do Estado. O que faço é tentar engastar nos internautas a estima pela língua e compartilhar as discussões de gramática que uso fazer nos fóruns de Português por este enorme orbe de comunicação chamado Internet.

    Obrigado, novamente.

    Abraço.

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A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.